Um dos autores que marcou profundamente a minha vida foi o sacerdote, jornalista e escritor José Luís Martin Descalzo, que conheci em Roma nas andanças do sínodo dos Bispos de 1971 e 1974, e que já conhecia pelos textos magníficos que publicava no jornal «ABC» de Madrid.
Os últimos 8 anos de vida passou-os com uma fortíssima insuficiência renal, parte dos quais pôde passar em casa, pois tinha lá instalada a máquina de hemodiálise. Sabia do que falava, quando falava de dor, doença, sofrimento, renúncia, aceitação, entrega, amor.
Edições Sígueme publicaram em 2009 e reeditaram em 2013 um conjunto de textos que ele escreveu e a que deram o título geral: «Razones para iluminar la enfermedad».
Na hora em que, atingidos directa ou indirectamente pela pandemia da Covid 19, nos interrogamos a sério e corremos o risco de cair no desalento, depressão ou mesmo desespero, oferece-nos estas palavras: «A minha resposta aos angustiados é sempre a mesma: não te debruces neuroticamente sobre os teus próprios problemas.... olha para os teus irmãos e começa a lutar por eles». (p. 84) Isto, hoje, faz-se cumprindo escrupulosamente e com ânimo agradecido as normas que as autoridades competentes nos sugerem ou mesmo impõem para suster a pandemia.
Continua: «quando os tiveres amado suficientemente, ter-se-á alargado o teu coração e estarás curado. Porque, de cada 100 das nossas doenças, 90 são de paralisia e pequenez espiritual. Como dizia Óscar Wilde: 'O vício supremo é a limitação do espírito'. E expressava-o ainda melhor um velho santo do Oriente, São Serapião: 'O problema de saber a que dedicamos a nossa vida é um problema artificial. O problema real é a dimensão do coração'. Consegue ter paz interior e haverá uma multidão de homens que encontrarão a salvação junto de ti'». (p. 84)
Dom Américo Aguiar, na missa transmitida pela Renascença em 21 deste mês, não deixando de sorrir, de se dirigir a todos os que sofriam de qualquer forma, com palavras de incentivo e ânimo, apoiadas na oração e na Palavra do Senhor, fez-se eco da pergunta que muitos fazem: onde está Deus nesta hora? E a resposta foi e é: Deus está naqueles que, em primeira linha, médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde, cuidam dos doentes infectados. Mas está também nas autoridades que nos informam e pedem determinados comportamentos que muito mitigarão a propagação da doença. Está em todos quantos se esforçam por encontrar vacinas e medicamentos, artigos e equipamentos de higiene que impeçam o contacto com o vírus; em todos quantos trabalham para que possamos ter o essencial para a vida de cada dia. E a economia não morra.
O vírus está aí e tem efeitos devastadores, sobretudo nos mais frágeis. Propaga-se de uma maneira invisível e alucinante. Nos nossos apertados cuidados de higiene e distanciamento social está a melhor resposta para evitar a sua propagação. Deus está em e com todos quantos cumprem escrupulosamente estas indicações, e não em quem, com motivos aparentemente pios, expõem os outros ao perigo de ficar contagiados e contagiar muitos outros de forma directa e indirecta.
Contou ainda uma história que fica na memória para sempre. Uma certa aldeia sofreu uma inesperada inundação que sucessivamente ameaçava e obrigava as pessoas a abandoná-la para não morrerem afogadas. Com resistências várias, mas sucessivamente alertadas pelas autoridades de vária ordem, as pessoas obedeceram e foram abandonando a aldeia. O pároco resistiu a todas as chamadas de atenção e ofertas de prestação de auxílio para que pudesse sair antes de a água o afogar. Mas resistiu sempre, com a desculpa de que Deus havia de prover e que ele não morreria afogado. Mas o inevitável aconteceu. Chegado ao Céu, ao ver São Pedro na porta de entrada, desabafa: mas afinal porque é que não me salvaram? - Porque tu não quiseste nem deixaste – Mandamos-te sucessivos avisos e ofertas de auxílio e tu rejeitaste tudo!.
Bill Gates 'profetizou' há cerca de 10 anos, depois do Ébola, que o próximo grande perigo e ameaça para a humanidade não viria das armas, mas de uma pandemia vírica. E que os responsáveis não estavam a preparar as coisas como deviam. Está a ver-se o resultado! Motivos para a revolta não faltam. Mas ela, agora, nada resolve. O que ajudará é um empenho ainda maior, assumindo o valor de verdadeiro sacrifício cristão e prática quaresmal autêntica que esta situação nos proporciona e a que nos desafia. Que o nosso coração não se comprima e definhe, porque morrerá, mas que se dilate, porque viverá e ajudará muitos outros também a viver e quiçá a descobrir um novo sentido para a vida.
Autor: Carlos Nuno Vaz
O problema real é a dimensão do teu coração
DM
28 março 2020