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O poder invencível do espírito nestes tempos de pandemia

Tal como a maioria dos portugueses, também tenho estado confinado no espaço doméstico, em obediência às recomendações da Direção Geral da Saúde e às disposições legais dos órgãos de soberania. Dedico grande parte do meu tempo a ler, a escrever e a ensaiar uma peça de teatro via Skype, mas também a refletir sobre o fenómeno da pandemia que afeta sobretudo as famílias que já perderam entes queridos, e as empresas e organizações de todo o género que lutam desesperadamente pela sobrevivência da sua atividade cultural, social e económica. A Covid-19, tal como outros surtos epidémicos, tem por base um vírus que é um agente infecioso desprovido de metabolismo independente, devido à sua ínfima corporeidade. Por essa razão, precisa de se hospedar nas células vivas de um organismo para se replicar, em cujo processo pode sofrer grandes mutações. O homem tem combatido com maior ou menor sucesso estes inimigos invisíveis que, todavia, conseguem infligir pesadas baixas nos povos de todas as partes do mundo, independentemente do seu grau de riqueza ou desenvolvimento social. Contudo, nada nos garante que, um dia, possa surgir um vírus contra o qual o homem não consiga arranjar antídoto eficaz, e que, por via disso, provoque índices de mortalidade próximos dos valores apocalíticos da Peste Negra (séc. XIV) ou da Pneumónica (séc. XX). Para todos os efeitos, esta pandemia será responsável pela maior crise social e económica dos tempos modernos, porque até mesmo os sistemas de saúde dos países mais ricos e poderosos do mundo foram abalados nas suas organizações, a ponto de já ter morrido muito pessoal hospitalar. Por esse facto, a atual crise deveria induzir-nos à procura do sentido oculto de fenómenos mais ou menos inexplicáveis, a fim de nos libertarmos da visão superficial de um quotidiano monótono, banal e transitório. Precisávamos de pensar que as pestes são um poder maior do que o homem, o qual, tendo meios para as afastar durante algum tempo, nunca as poderá extinguir de modo definitivo; e precisávamos também de pensar que o homem poderá um dia desaparecer da face da Terra, mas que a natureza permanecerá além dele, porventura engendrando novas formas de vida. É um facto indesmentível que o homem comete todo o tipo de crimes contra a natureza, cujo rol é pavorosamente indiscritível, viola a seu talante as mais elementares leis que regem a vida natural, agride grande número de animais pacíficos com uma sanha predatória inqualificável, conspurca o meio ambiente com gestos de absoluta indigência, destrói sistemas humanos com a sua ganância luxuriosa e não tem modo de meter freio às suas paixões destrutivas. Sim, o homem pode muito, porém, jamais pode dominar e compreender o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, e jamais pode desvendar tudo o que pertence à esfera do mistério insondável da existência universal. Jamais pode! Aí, nesse incorpóreo imenso, não quantificável nem mesurado, onde a ciência avançada está proibida de entrar com os seus sofisticados instrumentos tecnológicos, emerge um valor que paira por cima da matéria e resiste a qualquer análise apressada do especialista que em tudo vê estrutura objetal e valores matemáticos ou contabilísticos. E porque o mistério lhe escapa, não o captura nem o manipula, tende a esquecê-lo, a ignorá-lo e a execrá-lo, possuído por uma verdadeira agnosia de feição cética e niilista. Mas ele existe, chama-se espírito, e, sendo um princípio imaterial, não é traduzível em evidências sensuais ou categorias tangíveis de tempo e de espaço. Daí porque S. João, o evangelista, diz que “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus”. Prova deste gnoma inicial é a última prece de Jesus Cristo na cruz do Calvário, quando, antes de expirar, conclama: “Pai! Em tuas mãos entrego o meu espírito”, segundo Lucas. Significa isto que o espírito de Jesus não morreu e regressou a Deus, libertando-se do corpo, que é matéria perecível. Neste entendimento, só o espírito permanece, tudo o resto é efémero, fruste e relativo. Houve homens e mulheres que, tendo intuído o valor desta força imperecível, no fim das suas vidas virtuosas já só eram puros espíritos prontos a regressar ao seio do Pai. Quem me dera também saber abandonar o meu estado de pura matéria, para atingir esse maravilhoso desígnio libertador!
Autor: Fernando Pinheiro
DM

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12 abril 2020