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O Filósofo e o Presidente

Ninguém esqueceu as declarações depreciativas de Trump sobre a NATO, inquietantes para a estabilidade do mundo e susceptíveis de fragilizar a obrigação de assistência mútua na Aliança Atlântica, num período de grande tensão mundial (especialmente entre a Rússia e o Ocidente). Os titubeios que revela nas posições internacionais é assustadora: depois de rasgar o Acordo de Paris, renegando políticas ambientais, bastou umas horas de conversa com Macron para manifestar a possibilidade de “mudar de ideias”. O tão falado conluio com a Rússia nas recentes eleições estadunidense e a violência que rodeou os acontecimentos em Charlottesville parecem ter ultrapassado a linha vermelha, a ponto de se falar da destituição do Presidente (assunto a que voltaremos).

2. Ora, somente quem tinha um conhecimento profundo da sociedade norte-americana, como o filósofo Richard Rorty (1931-2007), poderia antever (em 1998) que a Casa Branca poderia vir a ser ocupada por tão excêntrico inquilino. De facto, no seu livro de 1998, Achieving our Country: leftist thought in twentieth-century America [“Realizando o nosso País: o pensamento de esquerda na América do século XX”], sobre os Estados Unidos, o conhecido filósofo, fora de seu estilo habitual, escreve (a meio do 3.º capítulo): “Neste momento, algo se vai romper. O eleitores que vivem longe dos bairros ricos vão concluir que o sistema fracassou e começarão a buscar um homem forte para eleger – alguém disposto a assegurar-lhe que, uma vez eleito, os burocratas presunçosos, os advogados ardilosos, os vendedores de títulos que fazem muito dinheiro, e os professores pós-modernistas, não mais darão as ordens”. Se estas palavras parecem escritas nas vésperas da eleição de Trump, a verdade é que o foram quase duas décadas antes.

Também não se enganou Rorty quando advertiu sobre o provável aproveitamento do descontentamento da classe trabalhadora americana, que se crê prejudicada pela globalização, de que Trump usou e abusou na campanha eleitoral: “Membros de sindicatos e trabalhadores não qualificados e não organizados, cedo ou tarde vão perceber que o Governo não está sequer a tentar evitar a diminuição dos salários ou a deslocalização dos empregos para outros países”. Para o filósofo, preservar as condições económicas dos trabalhadores é a melhor via para impedir a ascensão da direita intolerante e do populismo, que relega aliás qualquer ideia de distribuição de renda. “Ao mesmo tempo, vão perceber que os trabalhadores que moram nos bairros mais ricos – eles também desesperadamente amedrontados com o desemprego – não vão deixar (o governo) cobrar impostos para facultar benefícios sociais a outras pessoas”. Com estas palavras, o filósofo pressente a desagregação social a aproximar-se, que o candidato-magnata, quase vinte anos depois, logra efectuar.

Rorty tentava então apoiar os movimentos de esquerda “defensores da esperança”, contra os do “ressentimento”, antevendo a actual situação crítica: “Algo que muito provavelmente vai acontecer é que todas as conquistas dos últimos 40 anos conseguidas por americanos negros e minorias raciais, e pelos homossexuais, serão aniquiladas. O desprezo jocoso pelas mulheres vai voltar à moda (...)”.

No seu livro, Rorty trata do legado de Dewey e Whitman para o pensamento de esquerda, opõe-se às teses dos comunistas e dalguma esquerda académica, e justifica o seu próprio posicionamento: a ideia-força é que a esquerda americana, refugiada na teoria, rompeu a aliança com os trabalhadores e os sindicatos, não ostentando um projecto de esperança para a Nação. Daí que Rorty esclareça: “Um cenário como o do romance de Sinclair Lewis, It can’t happen here [“Isso não pode acontecer aqui!”] poderá ter lugar. Quando esse homem forte assumir o poder, ninguém pode prever o que acontecerá. Em 1932, a maioria das previsões feitas sobre o que poderia acontecer se Hindenburg nomeasse Hitler como chanceler foi exageradamente optimista”.

Rorty foi um liberal que acreditava na coesão social operada pela justiça social, pelas reformas, pela solidariedade. Ele, o autor d’A Filosofia e o Espelho da Natureza (1979) – obra filosófica que o celebrizou –, escreveu também Contingência, Ironia e Solidariedade (1989), onde sustém que a tarefa do intelectual sobre a justiça social não é tanto aperfeiçoar a teoria mas sensibilizar para o sofrimento dos outros, que importa, pela solidariedade, erradicar.

O autor não escreve segundo o denominado “acordo ortográfico”


Autor: Acílio Rocha
DM

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2 setembro 2017