Ahistória das religiões ensina-nos que através dos tempos as religiões têm considerado a filosofia ou manifestamente hostil ou complementar à sua compreensão. No entanto, hoje, são cada vez mais os autores que se inclinam a considerar que a filosofia e a revelação, embora diferentes, se podem aproximar, singularmente, desde que se apliquem, em vez de serem consideradas do exterior como coisas fixas.
Nos séculos XII/XIII, surgiram três grandes filósofos dentro de três diferentes culturas: o árabe Averróis (Ibn Rush), nascido em Córdova (1126-1198), o judeu Maimónides (Moisés ben Maimon), nascido também em Córdova (1135-1204) e o cristão S. Tomás de Aquino, nascido em Itália (1228-1277). Perante a relatividade e fragilidade do pensamento e filosofias modernas, podemos afirmar que, nas suas linhas gerais, as ideias destes três filósofos poderão dar um grande contributo para o diálogo intercultural e inter-religioso.
S. Tomás entrou em debate (em diálogo) com os filósofos árabes e judeus num momento propício para o efeito, uma vez que a Andaluzia muçulmana de Córdoba, no século precedente, oferecia um exemplo extraordinário de colaboração entre o monoteísmo e a filosofia.
Enquanto o pensamento de Averróis pode ser verificado num dos seus textos mais célebres: “O Discurso Decisivo”, o de Maimónides pode ser encontrado na sua obra: “O Guia dos Perplexos” (ou dos indecisos), onde apresenta os “13 princípios da fé judaica”. Para ele, a maior parte da Bíblia seria prejudicial se fosse interpretada literalmente, pelo que a filosofia será necessária para determinar o seu verdadeiro significado.
Por sua vez, S. Tomás de Aquino tem um sistema da pensamento tendente a conciliar a razão e revelação, filosofia e fé. O mais famoso contributo de
S. Tomás são as “cinco vias”, ou provas da existência de Deus. Fiel seguidor de Aristóteles, para ele existem algumas verdades teológicas que podem ser alcançadas pelo simples uso da razão (vg. a existência de Deus).
Outras, podem ser apreendidas ou pela razão ou pela fé. (vg a Providência e bondade divinas). Outras só podem ser conhecidas por revelação (Trindade das pessoas de Deus e Encarnação de Deus em Cristo). As conclusões da fé, segundo S. Tomás, estão para além das da filosofia, pois, não são derivadas da argumentação filosófica, nem constituem a base necessária da mesma.
A fé é um estado de espírito razoável e virtuoso porque a razão pode demonstrar a justeza da aceitação da revelação divina, ainda que não possa demonstrar a verdade daquilo que é revelado. De acordo com as teses de S. Tomás de Aquino, ninguém deve viver contrariamente àquilo que o próprio espírito lhe propõe como verdade, de modo que a consciência pessoal é erigida a juiz supremo da ação humana, competindo a cada um fazer o esforço necessário com vista a obter boas decisões.
Durante muitos anos os autores consideraram a filosofia como uma “serva da teologia”. Com o surgimento das universidades (Paris, Oxford, Bolonha, etc.) a filosofia passou a ser uma disciplina autónoma em relação à teologia.
As teses de S. Tomás perturbaram durante muitos anos algumas mentes, mas nos tempos recentes, os seus extraordinários talentos estão a ser gradualmente redescobertos pelos filósofos seculares. Foi preciso chegar aos fins do séc. XIX para a obra de S. Tomás de Aquino ser devidamente reconhecida. Com efeito, o Papa Leão XIII (1878-1903), protetor eminente dos estudos e da cultura cristã e das investigações científicas, na sua encíclica “Aeterni Patris”, propôs S. Tomás como Doutor da Filosofia e Teologia católicas.
No tempo em que a Europa, por várias razões, está a conhecer uma autêntica diversidade cultural, a filosofia poderá ajudar a esclarecer essa multiplicidade enorme de tendências e de culturas que carateriza este princípio de século.
Se é certo que a filosofia levanta, invariavelmente, os mesmos problemas, uma boa filosofia consiste em levantá-los em termos novos que cada época nos obriga a produzir. Nesta perspetiva, a filosofia pode contribuir para a descoberta de novos valores, com um objetivo unificador.
A relação entre fé e razão foi suficientemente apreciada pelo Papa João Paulo II, em 1988, na sua encíclica “Fides et ratio”, concluindo que a fé e a razão “ajudam-se mutuamente, exercendo uma em prol da outra, a função tanto de discernimento critico e purificador como estímulo para progredir na investigação e no aprofundamento. Este discernimento critico é o que se busca na investigação dos milagres no contexto dos processos de canonização.
Autor: Narciso Machado
O Diálogo intercultural e inter-religioso na filosofia medieval
DM
22 agosto 2018