Voltemos a Harari e a Sapiens (págs. 262/263), para nos confrontarmos com a seguinte visão do cristianismo: «O cristão comum acredita no Deus monoteísta, mas também no Demónio dualista, nos santos politeístas e nos fantasmas animistas.» Este juízo não enfermaria de contradições teológico-formais se a enunciação tivesse sido: «Alguns cristãos comuns acreditam no Deus monoteísta, mas também no Demónio dualista, nos santos politeístas e nos fantasmas animistas.» Nesse caso, e por exclusão de partes, o cristão verdadeiro acreditaria num Deus monoteísta, mas não em demónios dualistas, santos politeístas e fantasmas animistas.
Tendo, porém, feito uma generalização, tornando o cristianismo num caldo sincrético e contraditório de culturas religiosas, importa analisar, em primeiro lugar, a noção relativa à crença dos cristãos num «Deus monoteísta.» É verdade que acreditam, mas seria melhor que tivesse dito que «acreditam num único Deus», porque Deus, em Si mesmo, não é monoteísta nem deixa de ser. Deus é, como estatuiu S. Boaventura: «Se Deus é Deus, Deus é.», e d’Ele não se pode pensar nada maior, porque Ele está acima de todas as coisas, até do pensamento do homem, como também ensina Santo Anselmo.
Analisando em segundo lugar a afirmação referente à crença do cristão comum em demónios dualistas, santos politeístas e fantasmas animistas, conclui-se que Harari confunde o cristianismo com as correntes heterodoxas do dualismo, politeísmo e animismo, pois mesmo que algum cristão incorra num culto herético, não pode, nesta matéria, tomar a árvore pela floresta. Na doutrina católica não há a noção de um «Demónio dualista», pela razão simples de que o cristianismo não é, nem pode ser, dualista. Para a Igreja latina o demónio é uma entidade que existe apenas para atormentar o homem, cuja existência está bem documentada nos evangelhos. Vejamos (Mt 8-16): «À tarde, levaram a Jesus muitas pessoas que estavam possuídas pelo demónio.»
Todas as cosmogonias antigas, com particular destaque para o mazdeísmo persa, tomaram o demónio como símbolo do mal e instauraram um sistema irredutível entre o princípio do bem e o princípio do mal, criadores do espírito e da matéria, respetivamente. Assim nasceu o dualismo, que, ao longo do tempo, foi sendo reformulado por outras doutrinas heterodoxas, como o maniqueísmo, o gnosticismo, o priscilianismo e o já nosso conhecido catarismo. Porém, no cristianismo o que verdadeiramente existe é o princípio do bem, porque Deus tudo criou para o bem, e o mal só se manifesta quando a ordem divina das coisas é violada pelo homem, evidência que levou Santo Agostinho a sustentar, em Livre-Arbítrio, que «se o bem vem de Deus, o mal procede da ausência do bem e só pode ser atribuído ao homem, por conduzir erroneamente as próprias vontades.»
E quando Harari se refere a «santos politeístas» e «fantasmas animistas», voltamos ao mesmo: se tivesse dito que muitos cristãos transformam os santos da sua religião em pequenos deuses a quem prestam mais culto do que ao Deus da Santíssima Trindade, até eu lhe daria razão. Mas o problema é que ele tornou a acusação extensiva a todos os cristãos. Quanto a este aspeto, Jesus foi muito explícito quando confirmou o primeiro de todos os mandamentos da Lei de Deus (Lc 4-8): «Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás.» Assim procedem os santos da Igreja católica, porque o amor ao Pai exclui o amor do homem a si mesmo ou a falsas divindades. Amar o Deus verdadeiro é aceitar Cristo como «o Caminho, a Verdade e a Vida». De resto, enquanto o cristianismo é uma religião fundada por Deus, o politeísmo é um produto do pensamento mítico do homem antigo, quando procurou uma explicação para os mistérios da existência e do mundo. Ora, a antiguidade, estribada num conhecimento científico ainda embrionário, concebeu sistemas de interpretação simbólica das leis da natureza, criando deuses, génios e fantasmas adaptados às diversas experiências locais.
O panteão religioso da Índia, por exemplo, tem divindades que presidem a praticamente todas as necessidades sociais, psíquicas e anímicas do homem hindu, desde a casta superior dos brâmanes aos marginalizados dalit ou intocáveis. Os símbolos religiosos do hinduísmo representam fenómenos como a morte, a vida, o amor, a guerra, a fertilidade, os contratos, os juízos, a fortuna, a beleza, etc. E os brâmanes, ao aceitarem contribuições do animismo, conceberam deuses para o sol, a lua, a noite, o dia, o fogo… e foram buscar à natureza animais como o elefante, a vaca, o pássaro Garuda, o touro branco, o cavalo…
Noutras religiões politeístas conhecidas também não faltam deuses, génios e fantasmas de todo o género e feitio. E se um cristão, porventura, se deixa atrair pelo culto dessas formas de paganismo ainda vigentes em muitas partes do mundo, nesse momento deixa de o ser. Sabemos, infelizmente, que a crendice, a superstição, a feitiçaria e outras pretensas artes de adivinhação ainda exercem um grande fascínio no espírito de muitos cristãos. Mas isso não pode levar Harari a dizer que todos os cristãos acreditam «no Demónio dualista, nos santos politeístas e nos fantasmas animistas.» Vade retro, satana!
Autor: Fernando Pinheiro