Desde pequeno que tive algum fascínio pelo fogo; fascínio pelo lume da lareira, quando, nas noites de inverno rigoroso, nos reuníamos para falar de trivialidades ou, depois da ceia, a mãe impunha a sua autoridade e rezávamos o terço. Minha avó cabeceava, a velha criada deixava pender a cabeça e eu e meus irmãos, desesperados pelo tempo da reza, contávamos pelas contas do rosário o que havia para rezar. Saudade bate forte. É o vento que vem de longe e bate saudade! Esse fogo era belo. Ao ver as chamas de Notre-Dame faço o contraste entre o belo da lareira e o horrível do monstro das chamas, línguas vorazes que tudo derretem e lambem como guloso do horrível; na sua passagem sem escrúpulos transforma o belo em horrível. Notre-Dame leva-me ao Quasimodo, o corcunda de Victor Hugo. É do cimo das gárgulas, tetos e sinos, que o corcunda vê dançar na praça uma cigana por quem se apaixona e depois livra de um embaraço superior. E foram essas gárgulas, esses tetos e essas cimeiras percorridos pelo corcunda, que arderam na noite de 15 de Abril deste ano. Toda a gente que vai a Paris, vai a Notre-Dame e tem desta catedral medieval, a sensação da história que ela encerra. Cofre aberto porque é de todos não pertence a ninguém. Se em Guimarães nasceu Portugal poderemos dizer que em Notre-Dame nasceu a França Esta catedral é das que já não pertence exclusivamente à França, porque, na verdade, ela é um símbolo mundial de tal exponencial que não há ninguém que o não sinta um pouco seu. Hitler deu ordens para deitar abaixo a Torre Eiffel, mas não consta que mandasse fazer o mesmo a Notre-Dame. O glorioso sobrepôs-se ao odioso. Estou em crer que é tão mundialmente conhecida como a Marselhesa, outro símbolo duma França multicultural e civilizacional sem paralelo. É a cidade do pensamento, a quem chamaram a capital das luzes. Luz que vem do espírito não precisa de candeia que alumie. Vê-la arder foi sentir a queimada na alma, quer ela se situe na perda arquitetónica do pináculo e tetos, quer se situe na história do passado glorioso, quer seja referência cultural escrita, fotografada ou cinematográfica. A promessa política foi rápida: Macron comprometeu-se a fazê-la renascer das cinzas naquela rapidez que o tempo consente. Compreendemos perfeitamente que é uma chaga que está aberta e precisa ser fechada. A ferida não abriu apenas nos corações dos franceses, abriu por igual maneira no sentimento de todos nós, excluindo os cínicos porque estão tão dormentes de alma que já não sentem as dores próprias muito menos as alheias. Julgo mesmo que as obras de reconstrução, são a resposta a um certo jacobinissmo que começa a aparecer por todo o mundo; este jacobinissmo desemboca em panteísmo e num ateísmo que suprimem a vida e a alma das coisas e deixam o coração insatisfeito; como se da árvore caíssem todos os frutos e os galhos secos fossem o bem supremo de uma civilização! Tornar Notre-Dame a catedral de todos nós é ser parte daqueles que defendem valores na existência humana; é, em primeira linha, derrotar o cinismo desse jacobinismo e, em segundo lugar, lembrar aos relativistas que os valores morais e religiosos existem e são transversais ao homem. Estão a chegar donativos que vão financiar a reconstrução. Nunca tivemos dúvidas quanto a isso, mas não percamos de vista que é preciso saber como tudo começou, não vá o acaso ter autor. As lágrimas que vi nos olhos de franceses deixam-me a certeza de que a catedral de Nossa Senhora de Paris, transcendia o monumento medieval que era, porque se havia constituído em essência como alma de todo um povo. Este sentimento é também um belo fogo.
Autor: Paulo Fafe