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O amor é um dos mais altos valores do conhecimento

1.Em recente programa, na TVI, José M. Júdice criticou o site da Conferência Episcopal Portuguesa por ser “muito racionalizado, sem afecto, sem espiritualidade, sem uma oração neste momento tão difícil…”. Não comento, porque não conheço o site; posso, apenas, dizer o que já santo Anselmo, discípulo de santo Agostinho, dizia ao considerar imprescindível o afecto no discurso da fé: “É o coração que dá sentido à fé... porque o amor é um dos mais altos valores do conhecimento”. O sentimento é a voz do coração e só com o coração se pode globalmente comunicar e conhecer. É difícil haver transmissão da mensagem sem sentimento, sobretudo quando a mensagem tem como destinatário o coração, como é o caso da religião. E quando digo sentimento é mesmo sentimento, não é qualquer outra expressão vaga e platónica que não corresponde a nada na vida… Não me estou a referir ao conceito de racionalização em sentido freudiano, embora isso se possa reflectir em todas as situações do quotidiano; prefiro apenas realçar essa bonita forma de sentimento que se chama solidariedade que tem vindo a emergir por todo o lado, nestes dias… 2.Pelo facto de realçar o sentimento não quer dizer que esteja contra a cultura da razão. De modo nenhum. Sentimento sem razão é imaturidade. Os dois se comunicam. Procurar a razão de ser das coisas é uma necessidade e um dever de todos. E é também um prazer, pois é como sentir que se toca na mão de Deus que a sustenta na vida. Aí se encontra plasmada a inteligência viva da criação. Mas, há uma outra questão que me preocupa para além da procura da racionalidade das coisas: aceitar que pode haver mais razão para além da nossa razão… É que há um mundo de sabedoria do coração que nos entra pelos olhos dentro e que a nossa razão não alcança; e não pode ser isso que nos dá direito de o negar. É o mundo misterioso do milagre que só o coração pode entender, porque ele anda associado ao amor. O mundo do milagre e do amor situam-se na constelação do coração. Sem oposição com a razão. Há quem assuma que o milagre não faz sentido e que isso seria uma atitude ateia e injusta: Deus não ia alterar as leis da Natureza para agir a favor de uns e não de outros. No entanto, a Bíblia narra milagres de Jesus e a Igreja continua a acreditar na prova do milagre para confirmar se determinada pessoa é ou não santa. Não estou contra o discurso filosófico que não admite a existência do milagre; só não me atrevo a pensar que se possa impor a Deus a medida da nossa razão… Porque há factos que nos deixam suspensos entre esses dois e que apontam para outra dimensão que transcende a nossa razão. Dois exemplos: 2.1.Um dia, descendo Jesus do monte onde tinha falado a uma multidão (Mt 8,1), vem ter com ele um homem leproso (nessa altura, os leprosos eram obrigados a viver em quarentena, longe dos outros, para não os contagiarem) e, prostrando-se diante dele, pede-lhe, com aquela força de emoção e confiança que envolve todo o ser e não esconde reservas: “Senhor, se quiseres, podeis curar-me…” E Jesus disse-lhe: “Quero! Sê curado!” E, no mesmo instante, ficou curado… 2.2.Renzo Allegri, autor de uma biografia do célebre Padre Pio, conta que, um dia, de entre as muitas pessoas que se apinhavam no claustro do mosteiro onde ele residia para o verem passar a caminho da capela, estava uma mulher que lhe queria pedir a cura do marido, que estava doente há bastante tempo, os tratamentos nada tinham resultado e piorava a cada dia. Ela estava tão emocionada, mas ao mesmo tempo tão confiante, que não conseguiu dizer nada. Apenas lhe falou com o coração sobre o pedido que lhe queria fazer, olhando para ele como as outras pessoas que estavam a seu lado. Acontece que o P. Pio parou, olhou para ela, chamou-a pelo nome e disse-lhe, em voz audível: “Podes ir que o teu marido está curado”… E ela foi para casa a correr, confiante que era verdade. E era mesmo… 3.Perante factos destes, quero continuar a acreditar no poder da razão, mas não encontro outra saída senão admitir que ela pode ter limites. Quando a pessoa se sente impotente, é ao pedido de milagre que recorre… Assim aconteceu nos dois exemplos citados. E isso não é ateísmo nem é injusto, mas um sentimento de fé e de confiança em Alguém que está para além do poder da nossa razão. Quando era miúdo, recordo-me de ouvir, muitas vezes, na rádio, (nessa altura, ainda não havia televisão, em Portugal), o relato da bênção dos doentes, nos dias 13, em Fátima; o locutor dizia aquelas súplicas (“Senhor, se quiseres, podeis curar-me”…) com tal emoção que fazia arrepiar. Ninguém ficava indiferente... Não sei quem era o locutor; nem sei o que depois mudou para que deixasse de ser assim. O que sei é que desde que essas invocações passaram a ser ditas de uma forma racional, apenas como fazendo parte do programa, sem a confiança e intensidade de alma do leproso que foi curado, deixaram de ter interesse para o povo… O problema está aí: quando a expressão da igreja se torna racional e profissional… Porque, em momentos de aflição, como este do “corona vírus”, o Povo não espera da igreja um discurso racional e profissional de religião, mas um discurso de fé
Autor: M. Ribeiro Fernandes
DM

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4 abril 2020