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Não sou digno de desatar a correia das sandálias

Amanhã, os bracarenses, vilacondenses, portuenses e muitos outros pelo País estão em festa para celebrar o que é designado como o Precursor, o que veio à frente para mostrar quem é realmente o Messias.

Porquê o nome João? Se o pai era Zacarias, deveria chamar-se como ele, pensavam os vizinhos e conhecidos. Mas não. E não é o pai quem lhe impõe o nome.

É a mãe Isabel: «o menino chamar-se-á João» (Lc 1, 60) O pai biológico, Zacarias, mudo por causa da incredulidade perante a revelação de que seria pai, apesar da idade avançada dele e de Isabel, corrobora a escolha da mulher escrevendo numa tabuinha de cera: «O seu nome é João». (Lc, 1, 62-63). Na versão de Lucas, o anjo já tinha revelado a Zacarias que o filho se chamaria João (1,13)

Algo de especial tem e sugere este nome que, em hebraico, se grafa “Yôanan” e que significa literalmente: «YHWV – Javé faz graça». E o que é «fazer graça».

Responde Dom António Couto (ano B, pp. 351-353): Fazer graça «é uma mãe que embala ternamente o seu bebé nos braços e baixa para ele o olhar carinhoso, bondoso, maravilhoso, gracioso, maternal. É este duplo gesto de carinho maternal que é a graça bíblica. Sobretudo aquele olhar belo, enternecido, embevecido, maternal, que enche o bebé de graça».

E é assim que Deus olha para nós e nos acaricia. É assim que o anjo saúda Maria: «Alegra-te, Cheia de graça» (Lc 1, 28). E é isso que Maria canta no Magnificat.

«João é, por assim dizer, o último profeta do Antigo Testamento e o primeiro do Novo Testamento». E neste belo nome está contida toda a escritura. Ela diz-nos que tudo quanto é escrito no Antigo Testamento é para nos revelar quem é Deus: Aquele que faz graça ao seu povo.

Ao estar no limiar do Novo Testamento, como que sumaria toda a sua revelação: «Deus faz graça». João é uma enorme lição. Veio mostrar-nos quem, de verdade, é o nosso Deus: «Aquele que faz graça», que nos acaricia, se debruça sobre nós enternecido, que nos ama sempre e de uma maneira única, como só uma mãe sabe e é capaz de amar.

Outra anotação gostaria de fazer relativamente ao facto de Maria ter estado três meses em casa de Isabel quando a foi saudar. «Depois regressou a sua casa»(Lc 1, 56). Não foi para a ajudar nos trabalhos da maternidade, pois no versículo seguinte se nos diz: «entretanto chegou o dia em que Isabel devia dar à luz e teve um filho».

Certamente que o narrador quis dar a essa anotação um outro significado. Poderemos encontrá-lo relendo II Samuel, 6, 11: «A Arca do Senhor ficou três meses em casa de Obed-Edom, de Gat, tendo o Senhor abençoado Obed-Edom e toda a sua casa».

Ou seja, Maria, no texto de Lucas, é vista como a Arca do Senhor presente em casa de Isabel, que abençoa a casa de Isabel. E isso também nos ajuda a compreender porque é que Lucas nos diz: «Os seus vizinhos e parentes, sabendo que o Senhor manifestara nela a sua misericórdia rejubilaram com ela».

Não se diz, como vulgarmente se afirmaria: eles ouviram dizer que ela tinha tido um filho.

Uma terceira anotação que nos ajudará a enriquecer, creio, a nossa compreensão da figura do Batista, João, de seu nome. Quando os evangelistas abordam a relação dele com o Messias, questão que mereceu especial relevo no Evangelho de João, diz-nos a versão de Lucas ( 3, 15- 16): «Como o povo estava na expectativa e pensando intimamente se Ele não seria o Messias, João disse a todos: 'eu baptizo-vos em água, mas vai chegar alguém mais forte que eu, e a quem não sou digno de desatar a correia das sandálias. Ele há-de baptizar-vos no Espírito Santo e no fogo'».

Desatar a correia das sandálias remete para Deuteronómio 25, 9 e Rute 4, 8. Tirar a sandália era o rito que testemunhava que o acto de resgate tinha sido aprovado e ficava válido. Se quem tinha o direito e o dever de casar com a viúva recusasse, a cunhada viúva: «aproximar-se-á dele na presença dos anciãos, tirar-lhe-á a sandália do pé e cuspir-lhe-á no rosto... e chamar-se-á a esse homem em Israel casa do descalçado» (Dt, 25, 9).

A resposta de João: não sou digno de lhe desatar a correia da sandália quer dizer que Jesus não desistiu de ser o verdadeiro Esposo-Messias de Israel. Vem depois dele, mas com maior autoridade e direito.

«Eu não sou o Messias, mas apenas o enviado à sua frente. O esposo é aquele a quem pertence a esposa... o amigo sente muita alegria com a voz do esposo..» (Jo 3, 29-30).

Achamos que esta leitura, que é a de, entre outros, a do grande Alonso Scöchel no comentário da Bíblia do Peregrino às passagens em apreço, é mais rica do que aquela que vê na frase sobre o tirar das sandálias uma alusão ao discipulado, pois que correspondia aos discípulos desatar as sandálias do mestre e tirar-lhas quando chegasse a casa fatigado.


Autor: Carlos Nuno Vaz
DM

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23 junho 2018