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Mudam-se os tempos mudam-se as rotinas

Aristóteles chamou aos hábitos a nossa segunda natureza, porque não sendo naturais como os instintos, entranham-se tão profundamente em nós que lembram ser inatos: e se assim não fosse estaríamos diariamente sujeitos a uma contínua aprendizagem, como, por exemplo, a guiar o automóvel, a fazer a higiene, a tocar piano ou a usar o computador; e, daqui, resulta a evidência de sermos uns animais de hábitos. Depois, porque nos habituamos tão arreigadamente, criamos automatismos e é, então, que o hábito nos priva do poder de iniciativa, de analisar e rever situações, possibilitando-nos o recurso à rotina; e deste modo, ficando prisioneiros, caímos facilmente nos vícios de que nem sempre saímos com facilidade; basta pensarmos no que acontece com certos vícios como o de fumar, de beber ou, até, de roubar. Então, para nosso equilíbrio vivencial, valem-nos os bons hábitos que superam ou atenuam os vícios e são um poderoso auxiliar na nossa atividade pessoal e comunitária; porque nos permitem realizar automaticamente aquelas ações que mais requerem atenção e cuidados de inteligência, como sejam, por exemplo, o fazer o bem, o ser tolerante e paciente, o ser estudioso e respeitador. Pois bem, é a partir desta situação que o hábito, devido à repetição frequente do mesmo ato, se fecha à iniciativa inteligente e toma-se sinónimo de rotina que nos leva a fazer mecanicamente certas ações que mereciam mais atenção e prudência na decisão, negando, assim, a inovação e o progresso; e, por isso, dizemos frequentemente, em modo depreciativo, de alguém que é demasiado rotineiro, que faz sempre tudo na mesma, que não evolui; só que esta forma de nos ligarmos às coisas e às pessoas acaba por ser benéfica, quando estas rotinas nos libertam a mente para a nossa atividade diária de pensar, agir e tomar decisões dificeis. Todos sabemos por experiência própria ou alheia que, desde o nascimento, a criança tem permanentemente de aprender a adaptar-se, a habituar-se a viver seja individualmente, seja em comunidade; e isto passa pela criação de automatismos que a ajudam a crescer externamente e a desenvolver as suas potencialidades inatas; e a isto chama-se criar rotinas, sejam as de ir comer e de ir dormir, à mesma hora e nas mesmas condições, sejam as de andar com segurança e de brincar com alegria. E esta aprendizagem vai acontecendo com a ajuda das outras pessoas, pois sozinha dificilmente o conseguiria; e, como qualquer ser humano, a criança vai inscrevendo estas rotinas na sua estrutura mental e psicossomática e para toda a vida, embora muitas vezes melhorando-as para as adaptar às situações, numa clara demonstração de que adquire a tal segunda natureza de que fala Aristóteles. Mas, deixemo-nos de divagações e vamos ao que nos trouxe, aqui, hoje e é a prisão domiciliária, o confinamento, o isolamento a que temos sido obrigados por força da pandemia que entrou dramática e inesperadamente nas nossas vidas; e pensará o meu bom amigo leitor: mas o que têm as rotinas a ver com esta estranha forma de vida, como escrevia o poeta e a Amália cantava? Pode ter pouco, muito ou tudo a ver, pois este quebrar abrupto de muitas das nossas rotinas (diárias, semanais ou mensais), como ler o jornal no café ou no banco do jardim, ir às compras e para o emprego a pé ou de carro, trabalhar no escritório sozinho ou com os colegas, ir ao restaurante ou ao café no fim do trabalho ou aos fins de semana e, até, fazer uma corrida ou marcha diária ou semanal, conversar com os amigos, etc.etc.etc tudo isto como forma de manutenção fisica e destressante mental ou psicossomático, podem acarretar, agora que foram inopinadamente suspensas, quer no imediato, quer no futuro, graves problemas psíquicos, familiares e sociais, cuja dimensão ainda não está a ser avaliada; e, sobretudo, porque, quando sairmos desta situação, e sabe-se lá quando, é dificil saber se seremos capazes de recuperar tais benéficas e necessárias rotinas que tanta falta nos fazem, como quando somos atingidos por graves, prolongadas e fraturantes doenças. E, então, se pensarmos nos nossos idosos, as maiores vítimas desta pandemia, em todos os aspetos, assusta-nos pensar que mais dificilmente recuperarão o tão necessário equilíbrio fisico e psíquico nos finais de vida; mormente; e a maioria deles, prisioneiros nos lares, mais impedidos estão de conviver fisica e afetivamente com os familiares mais diretos, amigos e, até, companheiros de habitação. Todavia, sejamos otimistas e pensemos que o ser humano possui uma capacidade extraordinária e rápida de adaptação; e, muitas vezes, mesmo com o sacrificio de ter de fazer novas aprendizagens ou a criar novas rotinas, este pode ser um grande estímulo, um bom momento de começar a viver diferente, a viver melhor; e que da parte de toda a sociedade mais compreensão, carinho e solidariedade haja para os nossos idosos, ajudando-os a sair deste drama com sucesso e confiança no futuro. Esperemos que assim seja, acreditando nos versos de Camões: Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades. Então, até de hoje a oito.
Autor: Dinis Salgado
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29 abril 2020