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Mas isto é arte? (I)

No referido mês de Abril de 1917, apresentou à exposição da American Society of Independent Artists uma insólita obra: um urinol em porcelana branca, igual aos urinóis que vendia a companhia de artigos de quarto de banho J.Le Mott Iron Works. Assinou o urinol com o criptónico R. Mutt, inscreveu no rebordo inferior do objecto a data de 1917 e denominou Fountain (Fontaine, Fonte) a obra proposta para figurar na exposição.

Segundo as regras estabelecidas pelos organizadores do certame – Marcel Duchamp fazia parte da comissão organizadora –, não existia selecção prévia das obras apresentadas, mas o urinol assinado por R. Mutt não foi exposto, tendo sido ocultado algures, e não figura no catálogo da exposição. O original perdeu-se e a única imagem que dele perdura deve-se à fotografia tirada por Alfred Stieglitz, um fotógrafo nova-iorquino com alguma fama. Esta fotografia possibilitou a reconstituição do urinol perdido, do qual foram executadas réplicas em 1950, 1963,1964 e 1973.

A Fonte é o mais célebre exemplar da «obra de arte» que o próprio Marcel Duchamp designou, em 1916, por readymade (ou ready-made), isto é, um objecto banal da realidade quotidiana que, por decisão do artista e mediante a aceitação do que viria a chamar-se o «mundo da arte» (artworld) e a «instituição da arte», passa a ter o estatuto de «obra de arte». A integração de elementos do real quotidiano na estrutura formal e semântica das obras de arte, desde a pintura à poesia, é uma estratégia tipicamente vanguardista, tendo como objectivo apagar as fronteiras entre a esfera da arte e a esfera da vida real.

Já em 1913 Manuel Duchamp produzira um readymade intitulado Roda de bicicleta (Roue de bicyclette) e em 1914 um outro, denominado Porta-garrafas (Porte-bouteilles), mas só a Fonte, graças ao escândalo que provocou nos meios artísticos de Nova-Iorque, é que deu origem, sobretudo depois de meados do século XX, a acesos debates sobre o readymade, o «mundo da arte» e a (in)definição da obra de arte. Deve anotar-se que Fonte não é um readymade propriamente dito, isto é, um objecto da realidade quotidiana isento de qualquer elemento artefactual, mas sim um aided readymade – ou seja, um readymade «ajudado» –, pois Marcel Duchamp alterou a configuração funcional do urinol autêntico, apôs-lhe uma assinatura autoral e uma data e deu-lhe uma denominação metafórica.

O choque provocado pelo readymade de Duchamp ganhou nova actualidade quando, no apogeu da pop art, em 1964, o artista plástico Andy Wahrol (1928-1987) expôs como obras de arte, na Stable Gallery de Nova Iorque, uma colecção das suas Brillo Boxes, reproduções perfeitamente iguais, embora em contraplacado e não em cartão, às Brillo Boxes que se vendiam nos estabelecimentos comerciais e que continham esfregões de palha de aço com detergente para limpar tachos e panelas.

As Brillo Boxes de Andy Wahrol, graças ao ensaio intitulado «The artworld» que, logo no ano de 1964, lhe consagrou Arthur Danto (1934-2013), influente crítico de arte e professor de filosofia da Columbia University, e cujas teorias matriciais foram depois desenvolvidas no seu livro  The transfiguration of the commonplace (1981), tornaram-se um dos temas mais relevantes e mais controversos da contemporânea filosofia da arte,  em particular no que diz respeito à ontologia da obra de arte. Como veremos em próximo artigo, muitos pensadores e críticos de arte, como muita gente comum, perante exemplos como a Fonte de Duchamp e as Brillo Boxes de Wahrol, interrogam-se inquietos: «Mas isto é arte?».

O autor não escreve segundo o chamado «acordo ortográfico»


Autor: Vítor Aguiar e Silva
DM

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6 agosto 2017