Se bem me lembro, era uma noite de Outono 1983. Tinham-me dito que iríamos visitar um vizinho, já acamado, ex-combatente da Primeira Guerra Mundial. Do alto dos meus 11 anos, fiquei surpreendido com o facto de ainda poder encontrar uma testemunha do tempo das trincheiras.
O Tio Serafim da Veiga, como era conhecido na aldeia, encontrava-se já bastante debilitado, pelo que não lhe ouvi qualquer referência à Grande Guerra. Quando era mais novo – dizem-me – referia-se, por vezes, a algum termo ou localidade francesa sem se alongar demasiado sobre aquele penoso parêntesis (1916-1918) da sua vida.
No passado dia 8 de Abril, na companhia da Maire de Paris Anne Hidalgo, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa descerraram uma placa comemorativa na Avenue des Portugais, a dois passos dos Campos Elíseos, seguindo-se ume pequena cerimónia junto ao túmulo do soldado desconhecido, debaixo do Arco de Triunfo.
No dia seguinte, já com a presença do presidente Emmanuel Macron, a comemoração do centenário da batalha de La Lys prosseguiu a mais de 200 quilómetros a Norte de Paris, no cemitério com o mesmo o nome – onde hoje estão sepultados 1 831 soldados portugueses, dos quais 238 sem identificação –assim como no vizinho monumento de La Couture.
Na hora dos discursos, o presidente português considerou tratar-se do “nosso maior luto militar desde Alcácer Quibir”, com mais de 7 000 baixas, destacando a heroicidade de Aníbal Augusto Milhais (o soldado “Milhões”) e dos seus companheiros da 2.ª divisão do Corpo Expedicionário Português que então lutavam “por Portugal, pela sua pátria, pela sua gente, pela sua terra, à época pelo seu império”.
Também o seu homólogo francês – embora tenha aproveitado a ocasião para relembrar o perigo dos nacionalismos emergentes na Europa – não deixou de dar o seu contributo para uma narrativa que situa La Lys algures entre a epopeia gloriosa e a oblação colectiva, rotulando-a mesmo de “Verdun português”.
No meio da multidão, sobressaía a figura franzina de Felicidade Glória d’Assunção Pailleux (92 anos), terceira de quinze filhos de João Assunção, soldado originário de Ponte da Barca que, tendo-se apaixonado por uma jovem francesa, acabou por se instalar definitivamente na região.
Embora ainda hoje não saiba falar português – a mãe nunca lho permitiu, para não que não fosse estigmatizada pela população local – Felicidade nunca deixou de levar a nossa bandeira para as comemorações anuais de La Lys.
Aos jornalistas que a entrevistavam neste centenário, não se cansou sobretudo de testemunhar o amor filial e a admiração pelo percurso de vida de seu pai. Em regra geral, quem viveu a Guerra ou sentiu os seus efeitos não perde muito tempo com discursos revivalistas ou mitologias nacionais.
Tanto o Tio Serafim da Veiga e o João Assunção, como os outros 55 000 compatriotas mobilizados na Grande Guerra – e todos soldados de todas as guerras – são sobretudo homens e mulheres que sofrem na pele os conflitos que outros decretam.
Nas comemorações centenárias de La Lys, uma associação de portugueses residentes em França (Memória Viva) fez também questão de organizar uma viagem-homenagem e um programa-paralelo.
No final, depositaram no cemitério uma coroa de flores com a seguinte inscrição “Maldita seja a guerra (1918-2018)”.
Autor: Manuel Antunes da Cunha