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Maldita “cocaína”

Não, não vou dissertar sobre o musical de Filipe La Féria. Mas apenas referir-me a um livro, editado nos anos 80 do séc. XX, que me veio parar às mãos, intitulado “Minho Connection”, da autoria do Jornalista José Luís Manso Preto, no qual chama os bois pelos nomes e põe a nu a formação de verdadeiras quadrilhas do crime organizado. Sobretudo do narcotráfico, dos esquemas e meios sofisticados utilizados pelos traficantes. É que esta questão, apesar da liberdade de expressão de que gozamos em pleno séc. XXI, raramente é tema de fundo nos nossos órgãos de comunicação social.

Ora, o tema assaltou-me devido às notícias difundidas pela televisão e jornais, em Fevereiro último, acerca de um avião a jato, particular, intercetado no Aeroporto da Baía, Brasil, que escondia 578 kg de cocaína na sua fuselagem, no qual viajava um conhecido cidadão português. E também por, no mês a seguir, a nossa Polícia Judiciária – em conexão com a congénere espanhola – ter apreendido 10 toneladas de haxixe em 12 lanchas-flecha ancoradas na marina de Lagos, no Algarve. Assim como 806kg de cocaína, no Porto de Leixões, dissimulada em amortecedores de pontes. E, ainda, a descoberta do primeiro “narcosubmarino” em construção na Espanha.

Mas voltando ao referido livro, as fotos nele contidas não podem ser mais elucidativas de como tudo funcionava. Pelo que podemos rapidamente chegar à conclusão de que se tratava de gente com enorme capacidade financeira e de grande influência nos meandros do poder político, judicial e organismos públicos dos Estados por onde se movimentavam. E tanto Portugal como Espanha – países de costa litoral extensa – eram e são propícios ao desembarque das várias drogas, diga-se, em crescente procura no mercado clandestino.

Imagens essas, de 1987, das chamadas lanchas-voadoras com 5 ou 6 motores fora de borda, a debitarem 150 km/h, fundeadas no cais em Viana do Castelo, prontas a chegarem rapidamente à carga contida nos navios-mãe, em alto-mar. Enquanto se veem, a par, as da nossa polícia marítima – com apenas um motor – à velocidade máxima de 50 km/h, muito aquém em termos de rapidez. Ou seja, o mesmo que polícias de bicicleta e criminosos de Ferrari.

Voadoras, cujo custo rendava os 100.000 contos e a manutenção 10.000. Isto, sem contabilizar os subornos feitos pelos traficantes aos serviços estatais para – mesmo ao fim de semana – navegarem com um registo quando saiam de um país e chegarem ao destino com outro. O que significava terem conservatórias e notários à disposição para o efeito. Tal tarefa estaria bem mais facilitada, hoje, dada a privatização destes.

É uma obra literária, com 360 páginas, a dar conta de personagens envolvidas no tráfico com algumas centenas de nomes e fotos de capos portugueses, espanhóis, colombianos, jugoslavos chilenos, etc., alguns deles já debaixo dos torrões. Assim como de empresas-fantasma criadas para encobrirem, armazenarem e distribuírem os estupefacientes. Dando, ainda, conta dos lugares que frequentavam, das vivendas e palacetes em que viviam, quase sempre frente ao mar – a fim de servirem de postos de vigia e dotados de potentes “scanners” –, quase sempre no Alto-Minho e Rias Baixas, na Galiza.

Operadoras, financiadas pelos padrinhos que dirigiam o tráfico à escala Ibérica e mundial. Destacando as guerras entre rivais, em pleno Oceano, à disputa pelo produto. E em que os ajustes de contas eram contabilizados à metralhadora ou à bomba.

Passadas 40 anos a maldita “cocaína”, assim como as outras drogas, encontram novos sistemas e correios sob o manto protetor não só do poder político como, também, dos que fingem não ver enquanto outros enriquecem à custa das consequências nefastas para o nosso tecido social. E não se pense que há um combate a sério ao seu tráfico. É que os casos de sucesso vindos a público são uma ínfima parte do narcotráfico, pelo que é pura hipocrisia dizer-se que existe vontade em arrasar os Escobares e Miñancos de hoje.


Autor: Narciso Mendes
DM

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29 março 2021