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Linchamentos mediáticos

Em “A Expulsão do Outro”, Byung-Chul Han defende que vivemos hoje no “terror do idêntico”. Nunca viajámos tanto. Nunca tivemos tanta informação ao nosso dispor. Nunca comunicámos tanto. Nunca tivemos tantas possibilidades de nos aproximarmos uns dos outros. Continuamos, porém, sempre idênticos a nós mesmos. No universo das redes sociais, mas não só, comprazemo-nos em ouvir o nosso próprio eco, rodeando-nos quase exclusivamente daqueles que pensam como nós. Falta-nos o sentido da hospitalidade, do acolhimento da diferença que conduz à reconciliação.

Paradoxalmente, lembra-nos o mesmo autor, quase todos querem hoje afirmar-se pela sua diferença, por uma suposta autenticidade que mais não é do que a materialização duma cultura narcísica e de consumo que nos fragiliza e potencia estados de depressão.

E vivemos obcecados pelo medo de nos comprometermos numa relação ou com a palavra dada, de perder o emprego, das alterações climáticas, de não ter direito à reforma quando chegar a nossa vez, de ser atingido por uma doença incurável, do futuro dos nossos filhos, etc.

Embora juremos a pés juntos o contrário, olhamos o Outro com indiferença, não raras vezes com medo. Por isso, nos refugiamos na (nossa) conformidade social.

Vem isto a propósito de um conjunto de flutuações da opinião pública que ultimamente tem instalado movimentos extremistas e xenófobos (entre outras coisas) no poder, mas também sustenta expeditivos linchamentos mediáticos.

Por um lado, propagam-se notícias que carecem de confirmação ou notoriamente falsas, desde que isso favoreça o meu campo ideológico.

Por outro, multiplicam-se os julgamentos sumários de extrema violência na praça pública, desde que digam respeito a pessoas ou grupos que não pensam, nem ajam como eu/nós.

Ainda esta semana – é apenas o último exemplo de uma longa série –, um professor universitário foi “linchado” por afirmações relativas à afectividade das crianças e à sua relação com os avós. Discordo quer do conteúdo, quer da forma utilizada, isso não me dá porém o direito de achincalhar e humilhar quem pensa de modo diferente, muitas vezes até a coberto do anonimato.

Tenho o direito – diria até o dever – de contrapor, de defender o meu ponto de vista, desde que devidamente sustentado, sem que isso signifique aniquilar o Outro. Vivemos hoje espartilhados entre uma tendência cada vez mais opressora de uniformização do pensamento e o entrincheiramento ideológico. Não há verdadeiro contraditório.

A ausência do contrário não nos faz crescer. Diz nos ainda Byung-Chul Han, “na caixa de ressonância digital, na qual cada um é sobretudo a si mesmoque se ouve falar, a voz do outrodesaparece cada vez mais. (…) O desaparecimento do interlocutor que temos em frentefaz com que o mundo perca a voz e o olhar” (p. 71). A cada linchamento digital – o termo inglês é bem mais rude (shitstorm) – destruímo-nos um pouco mais.

Instalamo-nos numa zona de bem-estar e de conforto, erguendo barreiras – não é por acaso que florescem hoje os muros nas fronteiras das mais diversas latitudes – que permite ter o Outro à distância.

Deixamos de ser solidários para nos tornarmos solitários. Uns e outros, perdemos a capacidade de escuta. Escutar não é a mesma coisa do que trocar informação ou dizer que gosto, mas é abrir-se ao Outro, bem mais além do ecrã do computador ou do smartphone. “Sem vizinhança, sem escuta, não se configura uma comunidade. A comunidade é o conjunto dos ouvintes” (p. 91).

Saber escutar é incontestavelmente um dos grandes desafios que se nos coloca hoje. Se continuarmos ensimesmados, não nos espantemos que esta aldeia global se transforme num puzzle de fortificações territoriais e ideológicas justapostas, mas não vizinhas.


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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20 outubro 2018