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Lei da eutanásia e dúvidas presidenciais

Em 29 de Janeiro findo, precisamente no dia em que a pandemia fazia de Portugal o pior país do mundo em termos de infectados e de mortos por milhão de habitantes, uma maioria absoluta de deputados (136) entendeu colocar o nome da nação num dos lugares de topo entre as pouquíssimas que oferecem aos seus cidadãos o “direito” à eutanásia ou, para usar a terminologia legal, à “morte medicamente assistida”. E isto apesar de um tal vanguardismo contrastar, flagrantemente, com a pobreza e atraso do nosso país em tantas e tantas áreas, designadamente em termos de acesso da população a cuidados paliativos, onde a rede existente é reduzida (a taxa de cobertura nacional ronda os 25%), revela profundas assimetrias ao nível distrital/regional (há distritos com uma taxa de 0% e outros com valores superiores a 100%), é pouco especializada (presta cuidados com nível de diferenciação generalista, quando devia prestar serviços especializados) e tem uma enorme carência de recursos humanos (faltam cerca de 430 médicos, 2141 enfermeiros, 178 psicólogos e 173 assistentes sociais), como se extrai do último relatório de outono (2019) do Observatório Português dos Cuidados Paliativos.

Por isso, uma primeira conclusão a retirar é que os deputados, em vez de curarem de minorar ou atenuar o sofrimento dos seus concidadãos, querem oferecer-lhes a cura radical dos seus padecimentos – a morte… –, servida por médicos cuja função é salvar vidas e acompanhar a finitude natural dos seus doentes!

Perante o decreto que lhe foi presente para promulgação, o Presidente da República (PR) optou por requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade de algumas das suas normas, pedindo aos juízes que digam se “a liberdade de limitação do direito à vida” que a eutanásia pressupõe não é demasiado ampla em virtude de a lei utilizar “conceitos excessivamente indeterminados”, como “sofrimento intolerável” e “lesão definitiva de gravidade extrema, de acordo com o consenso científico”. Mas tendo o cuidado de fazer uma ressalva quanto ao objecto do requerimento, escrevendo expressamente que neste não se incluía “a questão de saber se a concreta regulação da morte medicamente operada no presente Decreto se conforma com a Constituição…”.

Ora sem embargo de, na perspectiva de quem acolhe a legitimidade constitucional da eutanásia, ser compreensível e necessário que a lei que a consagre utilize critérios e conceitos muito claros, de forma a não permitir deslizamentos inadmissíveis, era fundamental ouvir a opinião do TC sobre uma questão principal – a de saber se a antecipação da morte medicamente assistida viola ou não o direito à vida consagrado no art.º 24º, nº 1, da CRP. E o PR, que é um distinto catedrático de direito constitucional, tinha obrigação de manifestar expressamente o seu pensamento sobre tal matéria, mesmo que da posição por si assumida no requerimento em análise queiram alguns dos seus pares da academia extrair a conclusão de que, por princípio, não considera que possa estar em causa aquele fundamental direito à vida.

Não devendo decidir com base em convicções íntimas ou de fé, era-lhe exigível que tivesse em conta posições e dúvidas doutrinais, próprias e (ou) alheias, para mais quando, ao tomar a decisão de ouvir preventivamente o TC, era público que 24 professores de direito, 13 dos quais catedráticos (entre os quais Jorge Miranda, tido como o “pai” da Constituição de 1976), partilhavam, como partilham, do entendimento de que o diploma legal em causa viola o direito à vida, previsto no citado art.º 24º, nº 1, do CRP. Para todos eles a eutanásia é uma ofensa grave à inviolabilidade da vida humana. Ninguém tem o direito de morrer, como ninguém tem o direito de escolher querer nascer. O dever do Estado, dizem, “é proteger a vida em qualquer circunstância, desenvolvendo um eficaz e completo sistema de cuidados paliativos e apetrechando o SNS por forma a atender todas as doenças.

Perante o peso e valor de tantos académicos e de tão douta posição doutrinal, justificava-se que o PR, fosse qual fosse o seu entendimento sobre a questão, focasse nela, a título principal, o seu pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto em apreço.

Por mais inteligência ou matreirice que alguns vejam na forma como o PR questionou o TC, porventura com o propósito de tentar limitar o âmbito da eutanásia a doenças letais, não consigo deixar de lobrigar nela a marca da hipocrisia própria de quem quer ficar bem com ambos os lados.


Autor: António Brochado Pedras
DM

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5 março 2021