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Já chegámos à Madeira?

Três dias no Funchal, de 13 a 15 de novembro, para participar no décimo primeiro congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação (SOPCOM), desta feita em torno da temática “Comunicação, Turismo e Cultura”. Mais uma oportunidade para actualizar conhecimentos, partilhar as últimas investigações, rever colegas de profissão e alinhavar novos projectos. Para além das horas passadas na Universidade da Madeira, sempre se aproveita uma manhã para visitar lugares não frequentados aquando duma precedente vista. Ser turista, por muito poucas horas que sejam, é quase sempre uma performance a roçar a esquizofrenia.

Junto à marina, encontra-se atracado um imponente navio de cruzeiro. Em meia dúzia de minutos, desembarcam centenas de alemães. O fotógrafo oficial da excursão já tem a estátua de Cristiano Ronaldo em ponto de mira para metralhar os casais ou fãs que pousam junto ao ilustre filho da terra. Meia dúzia de passos à esquerda, abrem-se ao viajante as portas do Museu CR7, para que possa vislumbrar a coleção de troféus, condecorações e outras recordações amealhadas por aquele cujo nome se tornou uma marca planetária. No final da visita, sempre se pode comprar uma recordação. Uma camisola para o sobrinho, um porta-chaves para o amigo, um relógio, um guarda-chuva, uma toalha, um estojo, seja lá o que for.

O meu colega de excursão vislumbra, no meio da heteróclita coleção de artigos à espera de fregueses, uma caixa circular transparente com o que aparenta ser um terço. Não presto atenção ao reparo, pensando tratar-se de um gracejo deste especialista da área do marketing. Mas quase instantaneamente salta-me à vista o dito artigo, junto ao qual se encontra um segundo fio com as contas do rosário. Entre o quinto mistério e as três ave-marias, uma medalha branca retrata o jogador português na célebre pose com que festeja os golos. Atónito, ainda procuro uma explicação racional. Porém, as últimas dúvidas rapidamente se dissipam. O terço CR7 é vendido ao preço de dez euros. Só falta que, aquando da abertura, a caixinha se ponha a reproduzir a voz de Mariza a cantar “Ó gente da minha terra”.

Não há que admirar. Quando o maná turístico desce sobre uma terra, amiúde alguns autóctones desdobram o caudal da sua imaginação para propor ao visitante experiências e produtos com o selo da singularidade, chegando por vezes às propostas mais excêntricas. Certificam-se experiências gastronómicas típicas, asseguram-se vivências imersivas genuínas e garantem-se percursos ímpares, numa promessa quase sempre renovada de partilhar com quem nos visita o contexto de vida dos nativos. Geralmente, o turista não quer entrar num restaurante ou numa loja para turistas, termo que quase se tornou sinónimo de engodo, mas frequentar lugares apreciados pela gente da terra.

Que não seja por isso… Diversificam os artifícios para garantir um selo de autenticidade imemorial com estabelecimentos afiançando laborar desde há décadas – por vezes mesmo desde o século XIX –, artigos manufacturados, sabores únicos e por aí adiante. O leque de sinónimos a que recorre o marketing turístico integra uma plêiade de adjectivos escolhidos a dedo (típico, regional, autêntico, local, secular, etc.). A prática não é nova e não ocorre apenas quando se trata de turistas. Basta lembrar, a título de exemplo, que a 10 de junho de 1880, quando os republicanos orquestravam as comemorações do Dia de Camões contra a monarquia, já se vendiam não só bandeiras, balões e coroas de louros, mas também lençóis, lenços e louças com a imagem do poeta e até chapéus e sapatos Camões.

Como é óbvio, muitos dos que hoje se dedicam a receber os viajantes que visitam a sua terra, fazem-no de forma profissional e íntegra. Esse trabalho é, porém, desacreditado por quem está sempre à espera de uma janela de oportunidades para tirar o maior proveito possível, mesmo à custa das propostas mais estapafúrdias. Ficamos todos a perder.


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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16 novembro 2019