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IN MEMORIAM: O REGICÍDIO DE 1908

Na passada quarta-feira, dia 1 de Fevereiro, cumpriram-se 115 anos sobre o brutal assassinato do rei D. Carlos e do seu filho, o príncipe herdeiro D. Luís Filipe.

Por impedimento de ordem profissional, não pude participar na missa de sufrágio pelas almas dos dois ilustres personagens reais que, anteontem, como habitualmente, a Real Associação de Braga mandou celebrar na Sé Primacial desta cidade.

Mas a impossibilidade de me associar a tão piedoso acto não me inibiu de erguer a Deus uma prece especial pelo eterno descanso daquelas inocentes vítimas do regicídio de 1908. Nem me inibe agora de, mais uma vez, evocar a memória deste funesto acontecimento da nossa história contemporânea, com uma dupla intenção: fazer pedagogia cívica e democrática, condenando o ódio e a intolerância daqueles que, impunemente, mandaram, incitaram ou de qualquer forma foram coniventes com os hediondos assassínios; e reabilitar a memória de um grande Rei de Portugal e da monarquia constitucional que tão bem personificou esse regime, promovendo convictamente os valores da liberdade, da democracia e do moderno Estado de Direito e que, pelas suas raras qualidades de estadista, deve ser apontado como exemplo às gerações futuras.

Na realidade, importa lembrar que nem a violência nem o radicalismo ideológico são consentâneos com a vida democrática e que, no combate político, as únicas armas admitidas são as da persuasão e do voto. E ainda que, num regime constitucional liberal, entre as virtudes essenciais a observar hão-de inscrever-se necessariamente as do espírito de serviço, da humildade, da fraternidade e do respeito pela lei e pela ética.

Ora, é inegável que, sob a égide de El-Rei D. Carlos, o país viveu a mais longa era de liberdade e pluralismo que até então fora experimentada. Com zelo, independência e patriotismo, desempenhou fielmente o papel de árbitro entre os partidos constitucionais, cujas lideranças, sem êxito, quis renovar através do sufrágio eleitoral, então dos mais alargados da Europa.

É verdade que o sistema de “rotativismo” que então vigorava entre os dois maiores partidos democráticos estava esgotado e era permeável à corrupção. E que, decerto, o maior erro do Rei foi tentar moralizar e dar credibilidade e funcionalidade a um regime de alternância de poder que assentasse em maior grau em eleições cada vez mais alargadas e sérias. Mas, nem com leis que aumentaram substancialmente a capacidade eleitoral activa, permitindo o voto a cerca de 75% da população masculina com virtual direito de voto e às mulheres que fossem chefes de família, foi possível alterar aquele anquilosado sistema.

Aliás, como tive já oportunidade de escrever em anteriores artigos de opinião, com a implantação da República, o regime democrático regrediu: entre 1910 e 1926, durante muito tempo, a legislação eleitoral negou às mulheres o direito de voto e reduziu o universo eleitoral dos homens, excluindo, assim, a maioria da população da participação política activa. E, mais do que isso, nesse período, o Partido Republicano Português governou de forma verdadeiramente ditatorial, recorrendo a grupos paramilitares (que beneficiavam da protecção das forças da ordem) para, em acções de violência de rua, impedir os opositores de votar e de se manifestar publicamente. E, com o Estado Novo, aconteceu o mesmo ou ainda pior, pois foi completamente impedida a alternância democrática e reservado a um só partido o monopólio da razão, do poder e do Estado.

Por conseguinte, em contraponto com estes dois períodos da história republicana, pode afirmar-se, seguramente, que a monarquia constitucional deu provas de um amplo pluralismo político, garantindo aos republicanos, mesmo aos mais radicais, ampla liberdade de propaganda e de participação política, em termos substancialmente idênticos àqueles de que os partidos monárquicos gozavam.

Por tudo isso, quando são hoje justamente reconhecidas as qualidades do rei D. Carlos como monarca liberal, diplomata, artista, naturalista e homem de ciência e do mar e quando a monarquia constitucional é justificadamente reputada, no concerto europeu e mundial, como um dos regimes mais abertos e pluralistas do seu tempo, vale a pena trazer à memória o trágico regicídio de 1908.

Com o assassinato de D. Carlos, não morreu apenas a monarquia constitucional: com ela feneceu a mais longa era de liberdade e de pluralismo que o país conheceu até ao 25 de Abril de 1974!


Autor: António Brochado Pedras
DM

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3 fevereiro 2023