1. Dissemos que a carência afectiva precoce pode provocar atraso no desenvolvimento intelectual e insucesso escolar e que pode andar associada a comportamentos sociais de risco, de delinquência e de criminalidade. Pois bem, Cristian Bruecker, alemão, de 43 anos, de quem ultimamente se tem falado muito na comunicação social como possível raptor e assassino de Madeleine Mccann, a menina do Algarve, que desapareceu em 2007, é um exemplo disso. O que dele se sabe é que nasceu em 1976, em Wurtzburgo, na Alemanha e terá sido abandonado pela mãe ainda em bebé… Depois, foi viver para um orfanato até ser adoptado, ainda em criança, pela família Brueckner, que lhe deu o nome. A carência afectiva materna precoce deixou marcas definitivas de imaturidade, de inadaptação e de revolta na sua personalidade, apesar do eventual carinho da família adoptante. Aos 15 anos, já foi detido por roubos; aos 17 anos, foi condenado a 2 anos, numa casa de correcção, por crime de abusos sexuais de crianças. Depois, terá vindo para Portugal, onde se meteu no tráfego de droga para arranjar dinheiro, ao mesmo tempo que ia fazendo roubos e vendia os bens roubados. Agrediu, roubou e violou uma senhora de 72 anos, que vivia sozinha. Significativo é o depoimento dessa senhora, mais tarde, ao referir que notava que ele sentia prazer em fazê-la sofrer, quando a agrediu. Este sadismo inconsciente seria uma forma de compensação de castigar e fazer sofrer a figura feminina que o abandonou... Continua preso, na Alemanha, por outros crimes. Citei este caso para chamar a atenção para as consequências da privação afectiva, sendo a mais grave o abandono pela mãe.
2. Este sujeito fez-me lembrar de 2 casos que conheci de abandono materno ainda bebés. Dois irmãos, um quase da minha idade, que queriam que os ajudasse a descobrir a mãe deles, que seria prostituta e os terá abandonado e ido para Inglaterra. Como foram abandonados ainda bebés, não se lembravam dela. Foi a má mãe, mas era a mãe que tinham e queriam vê-la e ser aceites e acarinhados por ela… Porque é que nós não temos mãe, perguntavam eles? Do pai também não sabiam nada. Também queriam ter um pai. E o mais velho fez-me uma proposta: eu passar a ser o pai deles (alguém que os compreendesse, gostasse deles e lhes desse ajuda e protecção). Nessa altura, o mais velho teria cerca de 42 anos. Estava e mais o irmão num Lar de semi-internato para deficiência mental, porque a carência afectiva precoce deles inibiu o seu desenvolvimento intelectual. Eram duas crianças com corpo de adultos, sem sentido de vida e sem interesse de viver…
3. Falámos também, no último artigo, sobre os Direitos da Criança, referindo especialmente o Princípio X, onde se diz que a Criança tem direito a não ser agredida verbalmente ou fisicamente pelos pais ou outros. Dissemos também que uma das consequências dos castigos é que ela, mais tarde, irá fazer aos outros aquilo que lhe fizeram a ela… Aqui temos um exemplo, embora para já apenas a nível lúdico, que é aquele de que é capaz na sua idade. Há cerca de duas semanas, um menino de cerca de 7anos, de pessoas que conheço, veio-me dizer um segredo: hoje, o meu ursinho vai ficar de castigo, porque se portou mal... O ursinho é um peluche de que ele gostava muito quando era pequenino e que, agora, com o isolamento desta epidemia do coronavírus, deixando praticamente de brincar e falar com os amigos da escola, foi buscar, com outros brinquedos, para lhe fazer companhia, mas já assumindo-se como pai deles. Então, eu retorqui-lhe: que é que ele fez assim de tão mau para o pores de castigo? “Não sei… Portou-se mal, como a mãe diz e vai ficar de castigo… É assim que as mães fazem aos filhos…”. Para ver como reagia ao dizer-lhe que, se as mães gostam dos filhos, não os devem castigar… e que as crianças também têm direitos, porque educar não é castigar, mas é ajudar a criança a proceder de modo mais adequado, ele não me deu razão… A mãe é que tinha razão. Já tinha associado esse comportamento à figura materna. Era assim que ele via uma mãe.
Tentei, de novo, ajudá-lo a rever essa convicção… Ele percebeu, foi buscar o ursinho, fez-lhe uma festinha, disse-lhe que gostava muito dele e que, por isso, estava desculpado e já não ia ficar de castigo… Reforcei essa atitude e ele perguntou-me se podia falar mais vezes comigo… Claro que sim, disse-lhe eu. E, a seguir a esta atitude de confiança pessoal, vieram as confidências e as queixas da sua relação com a figura materna…
4. Já há anos que não vejo esses dois irmãos, internados num Lar e medicados para ajudar a controlar a sua ansiedade; e também já há umas boas semanas que não voltei a ver esse menino do ursinho. Mas, de ambos guardei a mesma lição de humanidade: o modo como reagiram positivamente ao afecto e como isso é capaz de mudar a nossa vida, polarizar o nosso coração em função de alguém que gosta de nós e estimula o desejo de reconstruir o nosso mundo interior e a nossa relação com os outros. Afinal, o castigo não constrói, apenas reprime; só a compreensão e o afecto nos tornam melhores.
Autor: M. Ribeiro Fernandes
Hoje, o ursinho vai ficar de castigo…

DM
21 junho 2020