Há muito que o mundo está para acabar. Espécie de idoso com funeral para breve, mas qual pilha alcalina, dura e dura. Há, inclusive, festa de arromba para celebrar o adeus final, e seitas que conspiram que apenas os eleitos se salvam. O ilustre Nostradamus também pressentiu o fim do mundo: “até 2000 chegarás, mas de 2000 não passarás”.
Depois disso, outros têm pressagiado o fim. Se a intuição do fim estivesse inscrita numa ordem profissional, ou fosse um serviço de qualidade, dos que têm livro de reclamações, este estaria provavelmente repleto de queixas de um consumidor que viveu seriamente a ilusão do fim.
Desenganem-se os que pensavam que o mundo ia acabar, porque afinal está “firme e hirto que nem uma barra de ferro”, citando o ‘Professor’ Alexandrino, figura emblemática do oculto mais inculto de Portugal, mas que tem uma certa piada quando fala do que a visão não alcança.
Mas se desta vez for a sério, ou seja, se o mundo estiver mesmo para acabar, não quero ser pessimista, dando ao menos possibilidade para que um novo mundo o substitua. Não lhe chamaria o paraíso, mas uma espécie de via média, ainda antes do purgatório. Falo do admirável mundo novo chinês.
Um mundo onde elescompram tudo e, já agora, onde elescomem tudo, diria Zeca Afonso, embora noutro contexto. Um mundo onde há cada vez mais habitantes, porque elessão o povo mais numeroso e tomam contade tudo.
De tal modo, que enquanto na Europa não nascem crianças (e as que nascem são as de muçulmanos imigrados), além do árabe, noadmirável mundo novochinês, falar-se-á o mandarim, embora não propriamente por gosto, porque é difícil, mas por necessidade.
Será o admirável mundo novochinês necessariamente mau? Não, apenas diferente: o reencontro da China nostálgica com o seu passado glorioso, em que negociava pacificamente com os povos da periferia.
A grandeperiferia globalorganizada em círculos concêntricos e assente num sistema tributário, onde todos os caminhos levavam à China, muito antes de conduzirem a Roma. Neste novo mundodepois do fim do mundo, a Pax Sinica(não no sentido pejorativo) substituirá a rede de infraestruturas que serve hoje de alicerce à Pax Americana.
Não haverá individualismo, mas holismo, ou seja, não o indivíduo faz sentido porque se insere num grupo, e não o inverso (traço comum na cultura asiática). As dores e as alegrias, as vitórias e as derrotas de um só serão diluídas no todo. Ganhará ou perderá o sistema, mas não os seus componentes. O grande olhoperscrutará minuciosamente as suas unidades.
Premiará o bom e punirá o insensato. Não obstante o tom profético, há indícios de que a realidade não está assim tão longe, mas apenas em fase de teste na China. Chama-se ‘sistema de crédito social’ e pretende vigiar o comportamento da população, pontuando os cidadãos de acordo com a sua conduta.
Se tudo correr bem, como espera o governo chinês, o programa deverá estar operacional até 2020. Alguns exemplos do mundo que está para vir, tendo em conta aquilo que ele já é. Há hoje, na China, quem seja proibido de embarcar no comboio ou no avião. O grande olho que tudo vê impediu cerca de nove milhões de pessoas com baixo crédito socialde aceder aos transportes na China.
Perde pontos aquele que fuma em locais não destinados a tal, como o que passa horas a jogar em consolas ou fazer postsnas redes sociais. O sistema também pune o que leva uma vida frívola, esbanjando o dinheiro em luxos.
O cidadão com baixo crédito social está impedido de matricular os seus filhos nas escolas mais reputadas ou de ser contratado, já que o governo incentiva as empresas a consultar a lista negra dos créditos sociais antes de contratar trabalhadores.
Por sua vez, o cidadão exemplar é recompensado, podendo obter descontos nas faturas de energia, melhores taxas de juro nos bancos e, inclusive, melhor perfil nos sites para conhecer a cara-metade na China (onde há muitos homens, mas poucas mulheres).
A verdade é que há chineses que veem virtudes no sistema, na medida em que este tem alegadamente contribuído para repor uma ética muito esquecida. Dito isto, é possível que o mundo novo não seja necessariamente mau.
Autor: Paulo Duarte