Filosofia para pequenos grandes filósofos
de Rosa Maria Conde Proença, com ilustrações de Patrícia Isabel Pires Correia,
Lisboa: Chiado Editora, Setembro de 2017
Apontamento para a Sessão de Lançamento do Livrona Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Braga, em 11 de novembro de 2017 Esta Obra afigura-se-me como um texto impregnado de um estilo escorreito e simples, literariamente assente em conceitos que aludem muito diretamente a uma experiência de conhecimento, provavelmente haurida em intenso convívio com o mundo das crianças. Uma publicação em que a singeleza das palavras se faz acompanhar da beleza das imagens, das ilustrações. Em suma, uma publicação onde pontifica o equilíbrio da sensibilidade com a inteligência, num meritório esforço de legitimar a abertura da Filosofia às idades mais juvenis. Tarefa admirável porque difícil. Sim, reconhecidamente difícil, enquanto exercício que pretende traduzir vivências, noções, relações, implicações, construções mentais, argumentos e outros conteúdos em matéria de pensamento. Encontrar, com a simplicidade requerida, bons alimentos filosóficos, repito, não é tarefa de pouca monta. Por isso, os meus parabéns à autora Drª Rosa Maria Conde Proença, à Ilustradora, Drª Patrícia Isabel Pires Correia e à Chiado Editora por ter acolhido este projeto e o ter valorizado, publicando-o com a qualidade que todos podemos constatar. Este livro está organizado em redor de um conjunto de vivências comuns ao dia-a-dia das crianças, como por exemplo: lavar as mãos, observar o céu, contemplar o arco-íris, cumprir determinadas regras sociais, situações e experiências que podem ocorrer mecanicamente ou seja inconscientemente e sem que a criança se dê conta do seu significado mais profundo, como podem, pelo contrário – e é esta a intenção da autora – ser usadas de modo a explorar nelas um potencial de questionamento que “obrigue” a criança a pensá-las e a expandir um pensamento para lá do que é óbvio e do que é manifesto à primeira vista. A operação pode, então, estruturar-se em dois tempos. O primeiro momento consiste em aproveitar todas as expressões positivas que permitam intensificar a curiosidade da criança: alimentar os seus “por quês”, “de que modo”, “como foi”, “para que serve isto”, etc., que brotam espontaneamente no linguajar da criança, de modo a que à resposta dada se possa recriar uma nova pergunta. O segundo momento – e quanto a mim, o que confere mais originalidade ao texto de Rosa Maria Conde Proença – realiza-se escancarando as portas da mente da criança aos horizontes de realidade e de sentido que ela não deteta imediatamente, mesmo quando cai na conta de algo de novo e de diferente. É o que acontece quando, aprofundando os fenómenos singelos do dia-a-dia, a autora encaminha a criança para a reflexão sobre outros planos de realidade e de sentido invisíveis aos olhos, mas sempre presentes. O exemplo que o texto oferece dos micróbios que nos obrigam – para a criança trata-se de uma obrigação ilógica – a que lavemos as mãos, mesmo quando parece que estão limpas, parece-me muito bem conseguido. Chegados aqui, pode/deve o educador ajudar a criança a compreender que a obtenção de respostas a perguntas, por mais simples que se nos afigurem, como as que fazemos acerca das coisas, dos objetos, da vida, dos outros, de Deus, do bem, da beleza, do sofrimento, da morte, do amor… pode exigir muito mais do nosso entendimento e do nosso coração, do nosso sonho e da nossa imaginação, do que aquilo que alguma vez a criança conseguiu prever. Neste sentido, apontar para este “mais” capaz de desestabilizar provisoriamente a criança… eis o desiderato da Filosofia. Permito-me realçar a importância desta operação que, de certo modo, induz a uma benéfica “desestruturação” do mundo da criança, para que de seguida o reorganize e reestruture, enriquecido com o resultado do pensamento. Julgo que isto é o mais importante em termos de exercício pedagógico-didático, de carácter genuinamente filosófico. Algo que, mantidas as devidas distâncias, se aproxima do efeito da “refiguração” que Paul Ricoeur identificava na “palavra” e na “imagem”, quando estes se enchem de sentido, ficam como metáforas, polissémicas… e nos dão algo de verdadeiramente novo, inédito, ao pensamento, mas também ao sentimento. Transposta esta soleira onto-gnoseológica – como lhe chamamos na Filosofia – entramos na atmosfera propícia para que a criança vá paulatinamente interiorizando novos conceitos, novas referências, novas hipóteses, que mais tarde, provavelmente muito mais tarde, identificará como princípios orientadores do seu comportamento social, das suas opções políticas, do seu sentido de justiça, da sua necessidade dos outras, da sua relação com Deus, da sua noção de verdade, etc., etc. Mas, por agora, o que é fundamental é, sobretudo, sobretudo, que ela se vá saboreando o significado profundo da complexidade, do mistério que habita o seio da realidade. O texto da Drª. Rosa Proença põe em evidência estas categorias como as que finalizam o processo. Concordamos com a autora, pois entendemos que tais categorias permanecerão, precisamente, como o sinal indelével de uma mente que, mesmo na sua mais tenra idade, se afeiçoou à filosofia, quer dizer, uma mente que se iniciou no amor da sabedoria, mesmo que tal conceito perdure bastante impreciso durante muito tempo. Por isso esta “disciplina” é tão necessária nestas idades! O incontornável filósofo Platão considerou a educação a base e fundamento de uma vida feliz. E no início do Livro VII de A República, deixou-nos uma página memorável sobre a diferença entre a boa e a má educação. Afirma que a educação «não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles [referindo-se aos sofistas] que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos.» Ora, não é assim. O que acontece é que a nossa alma não é cega, e possui um órgão pelo qual ela vê continuamente, que é o pensamento, o entendimento. O que a boa educação faz é sim ajudar esse órgão a virar-se para o sítio certo, para a direção correta. Volto a citar o texto: «A educação seria (…) a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar a volta a esse órgão, não a de o fazer obter a visão, pois já a tem, mas uma vez que ele não está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso» (518c-518e). A grande virtude desta publicação da Drª Rosa Proença consiste em ajudar as crianças e os adultos (pais, educadores, professores…) que a lerem, a centrar o olhar nas questões que, de facto, nos devem ocupar totalmente, tanto o pensamento, a mente, como o coração, o sentimento. Bem haja, Drª. Rosa Proença pelo seu trabalho e os augúrios para que continue, corajosamente a produzir trabalhos nesta área interdisciplinar, que cruza a filosofia, a educação, a pedagogia, a psicologia.Autor: Carlos Morais