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Eutanásia: elementos para um debate

Como se pode ler no portal da Assembleia da República, na página Memória, a Constituição da República Portuguesa, após a VII Revisão Constitucional (2005), no seu capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais, consagra no Artigo 24.º o direito à vida, com a seguinte redacção no parágrafo 1): «A vida humana é inviolável». No Artigo seguinte, sublinha-se o direito à integridade pessoal, com a seguinte redacção também no parágrafo 1): «A integridade moral e física das pessoas é inviolável». Ora estes dois parágrafos estão unidos por uma palavra, o ajectivo qualificativo «inviolável». Por isso, em primeiro lugar, vamos pôr-nos de acordo a respeito do seu significado. O caminho mais recto é o recurso à filologia, a ciência que se ocupa, nomeadamente, do comentário e da explicação dos escritores. E neste campo, ganha especial relevo a etimologia, o estudo da história das palavras, consagrada pelo seu uso em textos escritos, nomeadamente da Literatura. Por isso, os dicionários assumem papel relevante neste domínio. Assim, no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa on-line, pode ler-se a propósito do vocábulo “inviolável”: «1. Que não se deve ou não se pode violar; sagrado; 2. Intangível; 3. Que não pode ser devassado». Fiel à regra de que na definição não pode entrar o definido, voltámos ao Priberam e identificamos para o significado de “violar” 1. Forçar alguém a ter relações sexuais; 2. cometer desrespeito de norma, lei…; 3. Abrir sem pedir autorização; 4. Forçar a abertura; 5. Entrar ilegalmente…». A envolvência semântica do signo «violar» remete-nos para um universo de violência, agressão, de profanação, na linha da etimologia latina deste vocábulo; o prefixo «in» adquire o significado de negação dessa possibilidade. Por isso, com toda a certeza da história das palavras, se pode afirmar que o cidadão português tem assegurado um pacto sagrado com a vida: o direito à vida é inviolável.

Por eutanásia, no plano etimológico, entende-se uma boa morte, isto é, uma morte sem dor, sem sofrimento, que resulta da intervenção directa de mão humana, contrariando o curso normal da vida humana. O mesmo é dizer que o momento da morte foi antecipado, forçando, violentando, desrespeitando a lei natural da vida. Ora isso introduz uma alteração do conceito de acto médico, até agora ausente da mentalidade da nação portuguesa: a acção do médico, genericamente, não servirá apenas para curar; agora, também vai significar o seu contrário, matar. E isto não está previsto na nossa Lei fundamental, como se demonstra acima, e apresenta-se como uma ruptura violenta da tradição solidária ao longo dos tempos. De tal forma assim é que nos atrevemos a dizer que assim se assiste, de forma inaudita, ao fim do mito da caixa de Pandora, pois deixa de ter sentido: com efeito, a humanidade vê assim arrebatada desse pequeno receptáculo a esperança que, com esforço, aí fora guardada!

Esfumou-se a esperança de que os Hospitais, os Centros de Saúde… enfim, de que o SNS estava exclusivamente ao serviço da promoção da vida e da sua preservação, enquanto valor absoluto e inalienável do ser humana. Está a forçar-se o desrespeito pela tradição de vinte e cinco séculos, plasmada no juramento de Hipócrates: “usarei tratamentos para ajudar os que sofrem, segundo as minhas forças e o meu entendimento, afastando a possibilidade de injúria ou injustiça”. E acrescenta o fundador da ciência da medicina: “Não darei veneno mortal algum a quem mo pedir, nem fornecerei tal conselho”.

Com esta violência, outra maior sobe no horizonte da nossa memória. Como se sabe, o jurista K. Binding e o psiquiatra A. Hoche, em 1920, no livro Die Freigabe der Vernichtung lebensunwerten Lebens (1920), apresentavam como direito a pretensão da sociedade de se libertar do peso económico de uma “vida indigna de ser vivida”. E foi deste modo que o regime nazi, com colaboração de médicos, assassinou cerca de trezentas mil pessoas, segundo dados do Tribunal de Nuremberg, entre crianças e adultos, deficientes físicos ou mentais.

Mas se a aprovação da eutanásia for alcançada, outra consequência maior trará, sem dúvida: a nação portuguesa passa a ter o direito a médicos formados longe dos grilhões de um estado, prepotente, que se arroga dono absoluta das nossas vidas. O mesmo é dizer, torna-se urgente o aparecimento de escolas de medicina fora da órbita do estado. Em nome do direito de livre escolha de quem nos assiste em vida.


Autor: António Maria Martins Melo
DM

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29 fevereiro 2020