Godot é uma singularíssima personagem literária do século XX, com certeza uma das mais evocadas. O que torna a notoriedade assaz extraordinária é a circunstância de não sabermos quem é Godot. Na peça de teatro que Samuel Beckett publicou em 1953, ficamos a saber que poderá existir apenas porque duas personagens, os sem-abrigo Estragon e Vladimir, bem menos famosos do que Godot, passam o tempo à espera dele, o que, aliás, não garante que exista. Sobre quem será Godot, há abundantes ensaios com as mais variadas especulações. Os que procuram algum símbolo por trás da personagem têm dito que ele tanto pode ser a vida, quanto o destino, a morte, Deus ou apenas uma boa oportunidade. A obra de Samuel Beckett, intitulada À espera de Godot, não obsta a que se diga o que se quiser sobre aquele por quem se espera. Consente mesmo que uns julguem lastimável uma espera em vão e que outros considerem jubiloso o simples acto de esperar.
“Enquanto tivermos a espera, a nossa existência tem uma direcção e um fim”, escreve Andrea Köhler em O tempo oferecido. Um ensaio sobre a espera[1], uma leitura particularmente propícia para este período sofrido que tanta paciência reclama. A afirmação reporta-se à obra de Samuel Beckett, que justifica uma outra observação da escritora e jornalista alemã. Socorrendo-se de um ensaio do dramaturgo George Tabori, intitulado À espera de Beckett, acrescenta que “o espectador ideal deverá regressar noite após noite para se submeter à mesma prova que experimentam Vladimir e Estragon: ‘Enquanto aparecermos à hora combinada, estamos salvos, se não, seremos castigados. Essa é a dramaturgia cristã: a vida espera que a vida comece depois de se ter concluído’”.
O tempo oferecido. Um ensaio sobre a espera evoca a espera cristã, recordando que “a cristandade reservou à espera um lugar fixo no calendário: as quatro semanas que antecedem o Natal”, mas não ignora aquilo que, de um modo geral, “esperamos: o outro, a primavera, os resultados da lotaria, uma oferta, a comida, o adequado e Godot”. A listagem de Andrea Köhler é exaustiva: “Esperamos a chegada do dia do aniversário, do dia festivo, da sorte, do resultado do jogo e do diagnóstico. Uma chamada, a chave na fechadura, o próximo acto, o riso depois de uma piada. Esperamos que cesse a dor, que o sono chegue ou que o vento se acalme”.
A espera já não é o que era (e, nestes dias de pandemia, muito menos). Em tempos, lembra a autora, estávamos condicionados pelas estações do ano e pelos ciclos agrícolas. “As estufas e a globalização tratam hoje de que nem os produtos da agricultura nem as estações do ano tenham já esse aroma especial que associava um sabor particular a um mês”, diz ela, considerando que “hoje é um anacronismo em muitos âmbitos da vida esperar que algo amadureça”.
O tempo oferecido fala das esperas mais ou menos penosas ou mais ou menos compensadoras e dos maus e dos bons usos da espera. “O que sabe esperar sabe o que significa viver no condicional. Mas toda a espera se converte em falta se ficamos pela mera possibilidade; quando a vida se nos vai à conta das falsas esperanças que nos impedem de decidir: a isso chamamos manter abertas as opções”. Para a escritora e jornalista alemã, em vez de seguir os padrões das nossas apressadas e saturadas vidas quotidianas, importa empregar o tempo de maneira significativa e, se possível, gratificante.
É preciso esperar, prescreve Estragon. Andrea Köhler di-lo de um modo diferente: “Júbilo, desvario ou aborrecimento: no apertado calendário das horas oferecidas, a espera é a página em branco que importa preencher. E que, no melhor dos casos, nos premeia com a liberdade”.
A espera é tempo concedido. Não é tempo perdido. Andrea Köhler insiste nisto e, numa entrevista, deixou, há tempos, não a propósito da ameaça viral planetária, um aviso: “Querer encurtar os tempos de espera só fez crescer exponencialmente a ansiedade e a necessidade de tratamento médico nas pessoas”. É preciso saber esperar.
[1] Barcelona: Libros del Asteroide, 2018
Destaque
A espera é tempo concedido. Não é tempo perdido.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes