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Dividir para melhor discriminar

Meia centena de Portugueses e Luso-Franceses – entre os quais o autor desta coluna mensal de opinião – assinaram, no passado dia 9 de Janeiro, na edição digital do diário francês Le Monde, um manifesto intitulado “Nem bons, nem maus”, da autoria do historiador Victor Pereira e do jornalista Hugo dos Santos.

A origem desta frente de protesto contra a “instrumentalização da história e da memória” da emigração portuguesa em França para melhor estigmatizar outras minorias conta-se em meia dúzia de linhas.

Na noite da passagem de ano, dois polícias franceses foram barbaramente agredidos em Champigny-sur-Marne, localidade a 15 km a leste de Paris, por um grupo de indivíduos que tinha forçado a entrada numa festa privada. O vídeo com as cenas de pancadaria não tardou a ser partilhado nas redes sociais. Acontece que Champigny também é um lugar de memória da nossa emigração. Aí se situava um bairro de lata onde viveram e/ou transitaram dezenas de milhares de Portugueses nos anos 1960/70, em condições extremamente precárias.

Mas regressemos à actualidade. O faits-divers de Champigny reavivou na opinião pública, pela enésima vez, o debate sobre a integração das populações (de origem) estrangeiras. Entre outros, os jornalistas Benoît Rayski (Le Parisien) e Alexandre Devecchio (Le Figaro) e o politólogo Laurent Bouvet (Sciences Po) apressaram-se em distinguir os “bons” imigrantes portugueses dos anos 1960, trabalhadores e subservientes, dos “maus” imigrantes, quase inassimiláveis, maioritariamente oriundos do Magrebe e doutros países muçulmanos.

“Mais de dez mil Portugueses viviam na lama. Sem água, electricidade, rede de esgotos ou recolha de lixo, etc... E não houve violência, nem associações para queixar-se de racismo. E, no fim de contas, houve integração. Quem pode hoje negar a desintegração francesa?”, escreve Devecchio. Ou seja, os problemas sociais – e as violências a eles associados – que hoje atormentam a França, devem-se exclusivamente a um conjunto de populações cultural e religiosamente inassimiláveis. De um lado, “o bom Português”.

Do outro, a figura do “Árabe”, do “Muçulmano”, do “Africano”, do “Cigano” ou do “Refugiado”. Desta forma, evita-se pôr em causa o modelo de integração à la française, alimentando-se simultaneamente um racismo de colarinho branco, também compartilhado por alguns Portugueses a viver em França.

O artigo de opinião publicado no Le Monde – cujos os argumentos não vou aqui repetir – já se transformou numa petição em linha que ontem contabilizava cerca de 800 signatários na plataforma change.org (Non à ceux qui voudraient instrumentaliser l’histoire de l’immigration portugaise!).

Mas diga-se, em abono da verdade, que esta instrumentalização da história e da memória dos e(i)migrantes portugueses não é apenas apanágio dalguns sectores da opinião pública francesa. Neste pequeno jardim à beira-mar plantado, também não falta quem obsessivamente se focalize nos emigrantes “de sucesso”, para melhor ocultar as razões que, nos últimos séculos, levaram milhões de compatriotas a saírem do país.

Nutro uma profunda admiração por quem subiu a pulso na vida, ainda mais em contexto migratório, ou quem procura crescer cultural e/ou profissionalmente com experiências no estrangeiro, mas isso não me faz esquecer todos os outros que foram escorraçados por motivos económicos, políticos ou sociais.

Não são os testemunhos que faltam. E para quem não os conhece ou não esteja com pachorra para ler, basta embarcar num voo low-cost entre Porto e Paris e ouvir histórias de vida de gente que continua a amar profundamente a sua terra, apesar das frequentes reflexões discriminatórias e/ou condescendentes que ouve da boca de alguns compatriotas que nunca saíram do país.


Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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20 janeiro 2018