Desde pequeno que não gosto de circo; achava o recinto de uma pobreza confrangedora, o palhaço pobre apanhava sempre do palhaço rico e este ficava-se a rir da desgraça do outro, os trapezistas metiam-me medo por mim e por eles, as artistas mal vestidas e com umas lantejoulas gastas, alguns fatos esburacados ou cosidos, enfim, era um espetáculo de brilhos ricos com pormenores pobres. Mas isso era eu e a minha sensibilidade para estas coisas, de que ninguém tem culpa por eu ser assim. Estes eram os circos que iam à minha vila e até à minha aldeia. Depois fui ao circo com animais e, aos meus sentimentos antigos, somaram-se-lhe os da repulsa por ver animais com a nobreza do leão, a altivez do elefante, a elasticidade do tigre, ou a esbelteza do cavalo ou e até as inocentes pombas e os cães fieis, fazerem habilidades; eu sabia, porque alguém de dentro do circo mo tinha dito, à base de treinos com estimulações elétricas, bastonadas, gritos, chicotadas de domadores ou adestradores. Pobres animais que nasceram para serem livres e, sem nada fazerem para merecer este cativeiro, ali estão como peças daquela engrenagem. E isto parecia-me um abuso duma raça racional contra os da raça irracional. Achava isto mal mas calava-me porque todos gostavam de ir ver, e eu não também tinha coragem para não ir. Era eu que era esquisito ou os outros é que o eram? Nesse tempo, o circo era maior ou menor consoante tinha mais ou menos animais domesticados. Agora, que há uma campanha contra a exploração desses animais nos circos, e parece-me bem, igualmente parece-me bem que haja uma solução para os que gostam de animais de e no circo: as imagem em hologramas seriam a solução; fariam parecer presença real desses animais sem os martirizar, sem chicote de adestrador, sem exploração do sofrimento animal. Não seria a mesma coisa mas, quando se muda, alguém fica a perder; aqui quem ganhava eram os animais, de certeza. Mas, e então as touradas, essa arte nobre de espetar farpas atrás de farpas num touro, para gáudio de milhares de pessoas que substituíram em si as arenas dos gladiadores da velha Lácio? Os toureiros de trajes de luzes, não são os gladiadores modernos bem encadernados? Para estes os hologramas não servem, mas poderiam substituir as farpas por objetos com ventosas, por exemplo, ou cobrir o dorso dos touros com um tecido de velcro. Mas não era a mesma coisa porque se não via o sangue dos animais, dizem os aficionados. Mas, para os que gostam de luta com sangue suor e lágrimas, colocava-se lá um dispositivo de tinta encarnada como se faz nos filmes, a simular sangue… era evidente que a coisa desviava-se um pouco daquela rudeza que é alma das touradas que, para ser boas, “ou morre o touro ou o toureiro”. Isto parece mais um epitáfio que um espetáculo. Mas era tourada, os toureiros eram os mesmos, os cavalos fariam as mesmas corriolas, os perigos para os lidadores eram reais: corriam os mesmos riscos e só o inocente do touro é que ficava a ganhar. Estamos num tempo em que os cães substituem os filhos, em que répteis são animais domésticos, iguanas e porquinhos-da-índia são bichos de estimação, então por que razão hão de ser tratados de maneira diferentes os outros animais?
Autor: Paulo Fafe