1. À universalidadedos direitos humanos opõem-se os defensores da primazia da diversidade cultural;para o multiculturalismo, a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” (DUDH) – cujo 70.º aniversário ocorreu em 10 de Dezembro – seria um documento etnocentrista, que decorreria da “dominação cultural do Ocidente”. O tema foi discutido na “Conferência Mundial de Viena sobre os Direitos Humanos”, tendo sido veementemente questionado por países asiáticos e africanos, e os de religião islâmica; porém, foi aprovado (25 de Junho de 1993) que “a natureza universaldestes direitos e liberdades é inquestionável”, tendo sido também afirmada a indivisibilidadedos direitos humanos, quer no que concerne aos “direitos civis e políticos” quer aos “direitos económicos, sociais e culturais”.
2. Do lado comunitarista alega-se, por ex., a igualdade de valorentre as diversas culturas (Charles Taylor), ou rejeita-se a primaziada autonomia do “eu” – a ser atribuída à comunidade (Michael Sandel); outros sustêm que os direitos humanos se inscrevem na "história e cultura do povo", e, sendo "criação de uma comunidadepolítica", por esta deveriam ser interpretados – quais “esferas da justiça” (Michael Walzer); outros defendem uma “cidadania multicultural”, com os respectivos “direitos poliétnicos” (Will Kymlicka); ou opõem-se ao conceito de justiça de cariz universalista (um “imperialismo cultural”), dando a maior relevância à diferença (Iris Marion Young), pois, além da dominação de minorias, há a opressãode grupos transversais (mulheres, idosos, trabalhadores, deficientes, grupos de opções sexuais diversas), possibilitada – dizem – pela concepção universalista que atribui a cada indivíduo iguais direitos.
3. Em suma: como articular o horizonte universal,expresso na DUDH,com asdiferençasculturais dos diferentes povos? Convém, desde já, distinguir valores "universalizáveis" e os que não o devem ser. Para desenvolver ou melhorar a ideia de humanidade, é importante conservar quer os valores universais quer manter a riqueza das diferenças culturais. A distinção entre o “universal” e o “particular” evoca a distinção entre o justoe o bom,presente na maioria das teorias éticas. Concordo com John Rawls quando afirma n’A Teoria da Justiça que não são os bens utilitaristas que determinam o justo, mas que o justoé prioritário por relação ao bom. A justiçadeve ser a mesma para todos os humanos – universal:não pode haver diferentes justiças dependentes de situações históricas ou culturais distintas; ao invés, o bom, isto é, os modos peculiares de vida são opções individuais e colectivas e, como tais, devem ser respeitados, desde que não violem os princípios da justiça. Não é tanto o multiculturalismo, como ointerculturalismo, que promove a igualdade.
4. Dado o pluralismoefervescente das nossas sociedades, onde há concepções diversas e com frequência inconciliáveis, é pertinente – sustém Rawls – propor um “consenso de sobreposição”: este dá-se quando a concepção política responsável pela governação é aceite por cada uma das doutrinas abrangentese razoáveis; ora, não deve haver o domínio de uma doutrina abrangente (de cariz filosófico, religioso ou moral, etc.) sobre as demais; e uma concepção política (congruente com a cultura de fundo da sociedade) não se confunde com as doutrinas abrangentes: se estas estão ligadas a formas particulares de vida (bens), todavia oconsensorefere-se a questões de justiça, susceptíveis de serem discutidas por todos em termos deracionalidadee de razoabilidade– isto é, da “razão pública”, que é distinta da das doutrinas abrangentes razoáveis. Sobre isto, leia-se a “Conferência IV” d’O Liberalismo Político, em que Rawls, tendo em conta objecções comunitaristas, afirma: "a concepção política da justiça mais razoável" é a "que protege os direitos fundamentais conhecidos e lhes atribui uma prioridade especial; também inclui medidas para assegurar que todos os cidadãos tenham meios suficientes para fazer um uso efectivo desses direitos fundamentais".
5. Trata-se de conciliar os princípios éticos, universais– os direitos humanos –, com a diversidade cultural. Hoje, muitos defendem que primeiro estão os valores comunitários (os “comunitarismos”), que devem prevalecer sobre os dos indivíduos. Ora, nenhum ponto de vistaculturaltem, por o ser, valor ético;a confusão entre diversidade culturale enriquecimento moralimuniza toda a forma cultural de qualquer crítica. Que dizer de grupos que negam a seus membros o direito à liberdade de opinião, de associação, de religião, à educação? Que impõem o analfabetismo, praticam a excisão feminina e, em geral, submetem as mulheres? Uma teoria da justiçanão pode depender de factos históricos ou culturais: se os direitos humanos abrem o campo da tolerância, também traçam o seu limite – não pôr em perigo a própria tolerância: não seria admissível tolerar a intolerância!
O autor não escreve segundo o denominado acordo ortográfico.
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha