Há bastante tempo que não via um velho amigo, super-cuidadoso com a saúde. Na sua casa, primava a higiene e a farmácia. Limpeza absoluta, desinfecção esmerada, remédios para todas as necessidades sem excepção, incluindo aqueles que exigiam receita médica.
Com a pandemia, recrudesceram as suas precauções. Álcool e outros produtos de desinfecção havia na entrada da casa, da sala de jantar, do quarto de banho, do quarto de dormir e talvez de mais alguma dependência que, segundo o seu critério, exigia vigilância e cautela. “Todo o cuidado é pouco”, dizia, lembrando um velho ditado. E vivia-o de alma e coração. Inclusivamente, na sua empresa, de quem era o dono e o principal promotor, todos os empregados estavam sujeitos a uma disciplina quase marcial de delicada apresentação e limpeza.
E assim raciocinava, num tom de justificação humorista: “Este vírus, vindo da China, fala Mandarim ou Cantonês e ninguém o entende. Ao mínimo desleixo, ei-lo ao ataque!”
Quando a Igreja dispensou os fiéis dos actos religiosos habituais, de acordo com as determinações governamentais de saúde pública, o meu amigo rejubilou. “Estou totalmente de acordo. Vê-se que os nossos bispos têm zelo pelas suas ovelhas”.
Arquitectou processos e meios de funcionamento profissionais, que procuravam fortalecer o mais possível a eficácia da sua empresa. Conseguiu bons resultados e disso se ufanava, sem dispensar, porém, aos seus colaboradores a mínima regra de rigor , como atrás se referiu.
Quando o Partido Comunista levou para a frente a Festa do Avante, achou que não devia opor~se, embora pessoalmente nem sequer lhe tenha passado pela cabeça usufruir desse meio de recriação. “Não me parece mal, observava, mas não irei lá”. Entretanto, com a diminuição das restrições que apareceram posteriormente, também não levantou problemas. “De facto, comentava, o homem não existe para ficar em casa todo o tempo. Precisa de espairecer um pouco mais e começar a fazer uma vida normal”.
Curiosamente, quando os nossos bispos, que zelavam, segundo opinou, cuidadosamente pelas suas ovelhas, determinaram que os fiéis voltassem a cumprir presencialmente o preceito dominical, guardando as normas estabelecidas pelas autoridades, reagiu de forma intempestiva. Opôs-se veementemente. E considerou até que a medida era incorrecta e, além de ostensivamente imprudente e desacertada, poderia ser um perigo de contaminação para muito mais pessoas.
Deste modo, desobrigou-se pessoalmente de a pôr em prática. Num dia em que, por casualidade, me encontrou, dissertou sobre as suas sérias razões de desobediência às autoridades eclesiásticas. “Como católico, sinto-me revoltado. Nunca pensei que houvesse tanta falta de senso em quem tem obrigação de orientar o rebanho de Cristo”.
Quando tentei pôr um pouco de água na fervura, como é costume dizer-se, não me deixou argumentar e sentenciou de modo taxativo: “Se há Missa na televisão, para quê esta obrigação presencial?”
Alguns dias mais tarde, telefonou-me, perguntando-me se eu poderia falar com ele na sua casa. Surpreendeu-me a proposta e aceitei-a, marcando dia e hora para uma data próxima. Ao chegar, espantou-me a quantidade de precauções que me foram impostas, de modo delicado, antes de o ver. E compreendi a razão do seu pedido sobre a minha presença no seu lar familiar, quando o encontrei refugiado atrás de uma espécie de câmara de plástico transparente, protegido com uma super-máscara e dispondo, numa pequena mesa, a seu lado, de vários recipientes com desinfetantes e produtos congéneres. Em suma: o vírus chinês visitou-o, apesar das suas precauções. Sentia-se inquieto e perguntou-me, um pouco espavorido: “Será que Deus se vingou por eu não ir à Missa presencialmente?” Sosseguei-o: “Meu caro amigo, quem perdoa até 70 x 7, como Cristo nos ensinou, não é vingativo... Não perde o “seu tempo” a vingar-se, mas apenas a perdoar”. Ficou a olhar para mim, um tanto surpreendido. E observou: “Nunca tinha pensado nisso...”
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“Meu caro amigo, quem perdoa até 70 x 7, como Cristo nos ensinou, não é vingativo... Não perde o “seu tempo” a vingar-se, mas apenas a perdoar”. Ficou a olhar para mim, um tanto surpreendido. E observou: “Nunca tinha pensado nisso...”
Autor: Pe. Rui Rosas da Silva