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Deus como mistério cósmico ou fazedor de leis terrenas

Ao longo de uma série de seis artigos contestei teses religiosas de Harari, não o fazendo, porém, por razões de exposição mediática, mas pelo dever moral de procurar um correto julgamento do cristianismo enquanto fenómeno histórico-religioso da maior importância para a humanidade. S. Tomás de Aquino deixou dito que a falta de oposição ao erro corresponde à sua aprovação tácita, e que a suma felicidade do homem se encontra na contemplação da verdade. Se esta asserção é verdadeira, então, foi uma pena que Harari tenha faltado à verdade em matéria de história e teologia cristãs, porque disseminou numerosos erros de análise no espírito dos seus leitores, contados aos milhões pelos quatro cantos da terra. A sua visão materialista de Deus e do papel civilizacional das religiões monoteístas afetou-lhe a sua imparcialidade de julgador, levando-o a ver apenas o lado negativo das mesmas, com particular destaque para o cristianismo. De resto, a pobreza da sua exegese está bem patente nas 21 Lições para o Século XXI, quando expõe o seguinte problema (pág. 229): «Deus existe? Isso depende do Deus a que nos referimos. O mistério cósmico ou o fazedor de leis terrenas?» Não deixa de ser estranho que um homem culto e inteligente, quanto Harari mostra ser, não saiba que Deus nem é uma entidade cósmica, porque o cosmos é material, ainda que infinito; nem é um fazedor de leis terrenas, ainda que justo, porque o seu Reino não é deste mundo. Se fosse cósmico, talvez um poderoso telescópio o pudesse localizar algures da imensidão do firmamento; se fosse um chefe de governo, talvez uma revolução o derrubasse da cadeira do poder. Fundamentando o raciocínio «teológico» que o levou a considerar Deus como coisa cósmica ou terrena, fez uma série de perguntas sobre o mistério da existência, das leis da física e da origem da consciência, para concluir da seguinte maneira: «Não sabemos quais as respostas a estas perguntas, e a esta ignorância damos o majestoso nome de Deus. A característica mais elementar deste Deus misterioso é a de que não conseguimos dizer nada de concreto sobre Ele.» Com este desconhecimento de Deus, Harari rejeita a história do seu próprio povo, subsumida em dezenas de livros do Antigo Testamento, desde o Génesis a Malaquias, o último dos profetas. Será que Harari nega os cativeiros do Egito e da Babilónia; será que não vê em Noé, Abraão e Moisés líderes políticos guiados pela mão libertadora de Deus; será que não acredita nos testemunhos dos escribas dos textos talmúdicos e da Mishná; será que não aceita como providenciais as batalhas que permitiram ao povo de Israel chegar à Terra Prometida; será que a batalha de Gabaon, travada por Josué contra Amalec, rei dos gabaonitas, não passa a seus olhos de uma ficção mirabolante, como ele diz?

A sistemática absência interpretativa da Bíblia levou Harari a vê-la como «um livro recheado de ficções, mitos e erros» Não espanta, por isso, que não tivesse feito qualquer referência, ao longo de 1.300 páginas, aos profetas do Antigo Testamento. Mas porquê tantos, e ao longo de tantos anos, e porquê a concretização de todas as suas profecias no Velho e Novo Testamentos? Não prometeram eles aos judeus um Messias, o último dos quais foi S. João Batista (decapitado por Herodes Antipas, a pedido de Herodíade e Salomé); e não é verdade que os judeus crucificaram esse Messias, no Gólgota? Porque não assimilou Harari a epifania do quarto cântico do Servo de Javé, de Isaías, onde o profeta antecipa a paixão e morte de Jesus Cristo? «Todos nós estávamos perdidos como ovelhas, cada qual seguia o seu caminho, e Javé fez cair sobre ele os crimes de todos nós. Foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca. […] Foi preso, julgado injustamente; e quem se preocupou com a vida dele? […] Se ele entrega a sua vida em reparação dos pecados, então conhecerá os seus descendentes, prolongará a sua existência e, por meio dele, o projeto de Javé triunfará.»

Terá, de outro modo, compreendido a profecia do próprio Jesus Cristo, anunciada após a expulsão do Templo dos cambistas e vendedores de bois, ovelhas e pombas que lá mercadejavam? «O zelo da tua casa me consome, e os insultos daqueles que te insultam caem sobre mim… (Salmo 69-10)» Terá compreendido a resposta que Jesus deu aos sacerdotes, quando estes Lhe pediram sinais que justificassem a sua violência? «Destruí este Templo e em três dias eu o levantarei.» Possivelmente não a compreendeu, tal como não a compreenderam os judeus, que tomaram o Templo referido por Jesus, não pelo seu corpo, mas pelo Templo de pedra que demorara quarenta e seis anos a construir.

Não entenderam naquele momento, nem mesmo quando Jesus, depois de morto, ressuscitou ao terceiro dia. O corpo de Cristo ressuscitado é que é o verdadeiro Templo da Nova Aliança, um Templo que não tem arquitetos, pedreiros, entalhadores, mas homens, apenas homens, onde Deus quer habitar para sempre. Na verdade, o Templo de Deus e dos homens que nele acreditam chama-se céu. Portanto, Deus não é coisa cósmica ou terrena, nem, muito menos, um estudo de caso académico. Laus Deo!


Autor: Fernando Pinheiro
DM

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27 março 2021