Regressou em companhia de um octogenário que acabou por ser o nosso cicerone durante a visita. As explicações foram sóbrias, precisas, duma profundidade cujo alcance não medimos muito bem no momento. Ficámos todos emocionalmente arrasados.
No final, quando já nos tínhamos despedido do simpático, mas misterioso guia, confidenciava-nos a jovem polaca: “Sabem que ele já foi director do Museu? É um dos sobreviventes do campo. É raro, mas às vezes acompanha os visitantes.”
Tratava-se de Kazimierz Smolen (1920-2012), um dos fundadores (1947) e ex-director (1955-1990) daquele recinto que testemunha ao mundo quão desmedida pode ser a barbárie humana. Durante três horas, levou-nos aos meandros de um lugar de extermínio onde ele próprio fora prisioneiro durante cinco anos (1940-1945), com a matrícula 1327, assistindo à morte de mais de um milhão de pessoas.
Mas àqueles jovens portugueses não falou do alto do seu pedestal, não destilou discursos de ódio, não prodigou lições de moral. Não revelou a sua identidade, nem que por ali vivenciara uma das páginas mais sombrias da história. Viera ter connosco para cumprir aquilo que os Franceses chamam de “dever de memória”.
Só mais tarde entendi o alcance do que vira e ouvira no decurso daquela visita. Nunca mais esqueci a sobriedade daquele homem, a fineza de trato, a discrição e o pudor com que nos falou dos horrores ali perpetrados. Aprendi infinitamente mais naquela manhã do que em rios, oceanos inteiros de frases feitas e de boas intenções passageiras sobre o amor e o perdão que diariamente correm nas redes sociais. Há pessoas que sabem o que é verdadeiramente amar porque muito padeceram... E disso dão testemunho…
Em Setembro de 2014, numa visita de estudo com alunos de Serviço Social (UCP-Braga), encontrei em Londres outro sobrevivente das atrocidades nazis, condição que partilhava com quase todos os residentes daquele pacata instituição de terceira idade. Impecavelmente vestido, falava espanhol, resquícios dalguns anos de trabalho na América do Sul. Trocámos um pouco mais do que breves palavras de circunstâncias. Voltei a ter sensação de estar a falar com alguém que sabe exactamente o peso e o alcance de cada um dos termos que usa. Há coisas que definitivamente não se aprendem nos livros.
Presumo que K. Smolen se tenha oferecido como guia até que as forças lho tenham permitido. Soube que veio a falecer aos 91 anos, a 27 de Janeiro de 2012, precisamente no dia em que se comemorava o 67.º aniversário da libertação de Auschwitz-Birkenau. Momentos antes de se despedir de nós, no final daquela manhã primaveril, aconselhou-me a comprar o livro Témoins d’Auschwitz.
Nestes dias de Páscoa, em que tanto se fala de viagens de finalistas, de escalada de violência no desporto e do retorno dos nacionalismos, esta obra voltou à minha mesinha de cabeceira. Por dever de memória. E porque há coisas que se aprendem nos livros.
Autor: Manuel Antunes da Cunha