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Da redefinição do nosso mundo

A advertência cautelar de Sólon para Creso, o poderoso rei da Lídia (na atual Anatólia), num diálogo criativo que nos sobra da Antiguidade, mostra-se digna de revisitação no tempo presente. “Não contes nenhum homem por venturoso até ao dia da sua morte”, terá apontado Sólon a um Creso possuído de alguma soberba, lembrando-o que o mais afortunado em grande parte da sua vida poderia vir a terminar na desdita.

Os historiadores sabem que as epidemias ou pandemias manifestaram-se no mundo, e designadamente na Europa, vezes demais: de forma “algo ligeira”, numas investidas, de forma mais apocalíptica, noutras, como sucedeu com as tristemente famosas Peste Negra e Gripe Espanhola, respetivamente nos séculos XIV e XX.

Por agora, ironia impensável, são os países ricos que mais exibem dor e sofrimento, da Europa aos Estados Unidos da América, numa pandemia que, como terá sucedido com a Peste Negra, chegou à Europa vinda da misteriosa China. E nos países ricos esta quase nova espécie de peste, o COVID-19, teima até em afirmar-se algo “democrática”, atingindo por igual os mais poderosos e os mais carenciados. Nas Idades Média e Moderna (até cerca de 1800), uma vez instalada a peste, a corte régia e outros poderosos deixavam as cidades e procuravam no isolamento rural a fuga ao contágio. Hoje, o designado confinamento social, nas cidades, e também o isolamento rural continuam a afirmar-se como uma arma defensiva de eleição, constatada a relativa impotência clínica nos quadros mais gravosos da doença.

Nos séculos passados que referi, particularmente na Idade Média, o trauma da peste era ultrapassado por um revigoramento do mundo, através de uma vida facilitada para muitos dos sobreviventes. Os salários subiam, as rendas baixavam e as heranças repentinas libertavam não poucos da necessidade de uma vida áspera, sobrevindo, como resposta, leis repressivas dos monarcas – para responder às queixas dos senhores e para evitar fomes – compelindo ao trabalho da terra aqueles que anteriormente aí encontravam a profissão.

Agora, particularmente aqui na Europa, numa economia assente nos serviços, algumas mutações serão reincidentes, mas outras anteveem-se diversas. Na habitação, as rendas da deverão baixar, assim como o valor para venda, num severo ajuste face à forte especulação entretanto observada, mas ninguém prognostica uma subida de rendimentos para os assalariados, nem um excesso geral na oferta de empregos (e isto porque, não obstante o quadro particularmente trágico das mortes até agora observadas, mormente em Espanha ou Itália, não se antecipa um quadro tão pavoroso – esperemos que não se cumpra! – quanto o registado em 1348 ou 1918-19). O abate na economia provocado pelas quarentenas decididas pelos governos europeus será duro, prevê-se, mas a recuperação poderá também ser relativamente rápida – certamente mais visível no setor produtivo e menos nos serviços ligados ao turismo e afins.

Mas a gravosa crise sanitária atual vai ter também repercussões na geopolítica europeia e mundial. A União Europeia, que tem vivido ultimamente tempos pouco alentadores, encontra nesta crise um desafio definidor. Depois da fuga inglesa, a mesquinhez que os países da UE temporariamente mais afortunados revelem na solidariedade para com os mais fustigados pela pandemia poderá revelar-se trágica. Perante a perceção de que a União não evidencie suficiente préstimo, nos países abandonados à voracidade do COVID-19 tenderão a ganhar balanço as forças políticas nacionalistas e antieuropeias. E perderemos todos, nós, os europeus. A paz, garantida por 75 anos na Europa, poderá mostrar-se vacilante a prazo; os países do Sul perderão âncoras para o seu desenvolvimento, mas os países mais prósperos e poderosos, com a Alemanha à cabeça, também perderão território livre por onde afirmar a sua força económica e prosperidade. Depois de alguma soberba inicial, que nem Creso atrás referido, parece que da UE mais rica emanam, entretanto, alguns sinais de solidariedade e bom senso. As formas da solidariedade europeia poderão assumir forma diversa das agora famosas corona bonds, mas têm que evidenciar-se substantivas, sob pena de traírem a história.

Num âmbito mais alargado, a globalização mostra também as fragilidades no contexto da atual crise sanitária. Os grandes blocos redescobrem que não podem alimentar o seu poderio apenas no setor dos serviços ou na força militar. A China, por onde a epidemia começou com vigoroso frémito, emerge como a grande potência que não sucumbe à desgraça. Da Europa aos Estados Unidos emanam imagens de considerável impotência: o número de mortes supera em muito as que a China revela (omite os números reais?); faltam ventiladores, máscaras e outro material de proteção que só a China consegue fornecer em abundância (acoplado a um “generoso empréstimo” de alguns médicos a uma Itália aflita). Depois de vencido este susto, a tentação das multinacionais e dos grandes negócios será retomar o business as usual, mas entretanto haverá de verificar-se uma recalibração, temporária ao menos. Tal como subsidia hoje a sua agricultura, para que não se torne refém de eventual crise frumentária futura, a União Europeia, para não sucumbir novamente numa próxima pandemia – que haverá de surgir, não sabemos é quando – precisará de redefinir o conceito de indústrias estratégicas, parece evidente. A hiperespecialização da economia europeia, ou americana, apoiada numa quase “diletante” desindustrialização, não garante soberania e grandeza. Não podemos ignorar a História.


Autor: Amadeu Sousa
DM

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7 abril 2020