“Não têm pão? Comam bolos!” A citação apócrifa é atribuída a Maria Antonieta (1755-1793), a última rainha do Antigo Regime, guilhotinada sob os ideais da Revolução Francesa e os insultos da multidão. Reza a estória que, nas vésperas da queda da Monarquia, a propósito da falta de pão de que se queixavam os Franceses, teria a esposa de Luís XVI afirmado: “Qu’ils mangent de la brioche!” Em verdade, o episódio é relatado no tomo IV das Confissões de Jean Jacques Rousseau, redigido entre 1765-1769 e publicado, a título póstumo, em 1782. Historiadores há que defendem que a citação não passa de mera invenção do filósofo das Luzes, enquanto outros a atribuem a Luísa Maria Teresa Vitória, filha de Luís XV. Mas todos são unânimes em considerar que não pode ser da autoria de Maria Antonieta, até porque quando chegou à França, em 1770, já Rousseau tinha escrito o famoso livro.
O certo é que a expressão se enraizou na memória coletiva, encarnando a sempiterna distância socioeconómica que teima em separar as classes populares das elites. Embora até a imprensa francesa venha, de quando em vez, recordar a questão da autoria de tão infeliz sentença – Le Monde (21/03/1980) ou Libération (26/11/2018), por exemplo –, cada vez que uma figura pública parece evidenciar algum desprezo pela situação das franjas mais periféricas da sociedade, volta à baila a analogia com Maria Antonieta. O fenómeno é, porém, transcultural. Como nos recorda Gregory Titelman (Random House Dictionary of Popular Proverbs & Saying, 1996), conta-se também que o imperador chinês Jin Huidi (259-307) teria ironicamente preconizado aos seus súbditos – que se queixavam de já não haver sequer arroz como alimento – que “comessem carne”.
Mudam-se os tempos, perduram os vícios, repetem-se as sentenças. A 21 de Maio último, a socióloga Dalal Al-Bizri assinava uma tribuna no diário catari Al-Araby Al-Jadid, na qual comparava a esposa do recém-nomeado primeiro-ministro libanês Hassane Diab a… Maria Antonieta. Numa das suas primeiras intervenções televisivas, a primeira-dama – cujo estilo de vida, nestes tempos de crise, parece não ter primado pela moderação – terá incentivado as suas compatriotas a trabalharem como mulheres-a-dias e os homens como porteiros ou em bombas de gasolina. Assim, prosseguia convictamente, se resolveriam os graves problemas da sociedade libanesa que – recorde-se – continua a debater-se com um alto nível de corrupção.
Nós por cá, também temos as nossas “Marias Antonietas” à moda da casa, a última das quais na pessoa do Primeiro-ministro. “É também um prémio merecido aos profissionais de saúde e à forma como provaram que o nosso Serviço Nacional de Saúde é robusto para responder a qualquer eventualidade”, proclamou António Costa, na passada quarta-feira, com toda a gravidade, numa cerimónia organizada, no Palácio de Belém, para celebrar a escolha de Lisboa como cidade-hóspede da edição 2020 da fase final da Liga dos Campeões. Há afirmações que deixam perplexos, alegações que revoltam e argumentações que nem merecem resposta. E há “prémios” que soam a insulto.
Já não bastava que as nossas chefias políticas se prestem ao questionável exercício de conferir honras de Estado ao anúncio da UEFA. Vem-me à mente outra locução histórica – Panem et circenses, extraída da Sátira X – por meio da qual o poeta Juvenal criticava a inércia dos seus concidadãos face às intrigas e manobras dos líderes para anestesiar a população... Em vez de jogos de futebol, perguntem aos profissionais de saúde e utentes se não preferem, como “prémio merecido”, salários condignos e melhores condições de trabalhos. “Pão e circo”, afirmava-se em Roma. “Não há arroz? Comam carne!”, sentenciava-se na China. “Não têm pão? Comam bolos!”, escrevia-se em França. “Com papas e bolos…”, diz-se na minha terra.
Autor: Manuel Antunes da Cunha
Com papas e bolos…

DM
20 junho 2020