As recentes eleições regionais nos Açores tiveram um desfecho inédito: o partido vencedor – o PS –, no poder há 24 anos, não foi chamado a formar governo, por ter tido maioria relativa que não lhe permitiu assegurar no parlamento uma base de apoio composta por mais de metade dos deputados.
A nova solução governativa foi antes achada entre os vencidos de direita que, encabeçados pelo maior partido da oposição – o PSD –, apresentaram uma coligação de governo com o CDS e o PPM, que foi viabilizada pela Iniciativa Liberal e pelo Chega.
Curiosamente, quando pela primeira vez ganhou as eleições açorianas, o PS também não conseguiu obter maioria no parlamento regional, nem sozinho nem com o único deputado do PCP: o PSD e o CDS conseguiram eleger mais deputados do que todos os outros. Todavia, apesar destes partidos haverem alcançado entre si um acordo de governação com base parlamentar maioritária, o então Presidente da República (PR), Jorge Sampaio, não aceitou esta solução, chamando para formar governo o partido vencedor. E fê-lo, não porque fosse esse o único caminho imposto pelo Estatuto Regional dos Açores, mas porque, tal como acontecia a nível nacional, a prática comummente seguida sufragava o princípio de que competia a quem ganhava as eleições (mesmo que sem maioria absoluta) formar governo. E com a mudança de ciclo político assim iniciada, o PS veio depois a consolidar o seu poder nos Açores, obtendo sucessivas maiorias absolutas.
Inesperadamente, os ventos da história mudaram. No continente e nos Açores. Em 2015, quebrando a práxis constitucional do regime, os socialistas, liderados por António Costa, tendo perdido as eleições, inviabilizaram um governo minoritário do PSD, que as ganhara, escolhendo o PCP e o BE para garantir o apoio parlamentar a um governo seu.
De forma perversa, ultrapassando a linha vermelha que todas as anteriores direcções socialistas sempre respeitaram, o PS subscreveu um acordo de incidência parlamentar que lhe garantiu o apoio de partidos cujos princípios e bases ideológicas contrariam valores democráticos e que apoiam regimes ditatoriais. E assim, inesperadamente, a esquerda extremista passou a influenciar várias das políticas públicas do governo, ainda que, até ao presente, se tenham mantido os alicerces do Estado de Direito democrático.
Foi nestas circunstâncias que sucedeu a mudança do “anticiclone” açoriano. E perante o precedente aberto por António Costa, o representante da República na região, com o aval do PR, indigitou para presidir ao Governo autónomo o presidente do maior partido da oposição que lhe apresentou um acordo de coligação com o CDS e o PPM, em torno de um programa comum de governação, viabilizado pelo Chega e pela IL, através de um acordo de incidência parlamentar. E tudo de forma constitucional e legal, num processo de transição que se processou de forma “pacífica e civilizada”, como bem destacou o PR.
Não obstante a normalidade com que esta situação foi encarada ao nível da região, a solução gerou ondas de choque no continente, sobretudo à esquerda, mas também em algumas personalidades da direita. O primeiro-ministro, por exemplo, considerou o facto da maior gravidade, acusando o PSD de “ter ultrapassado a linha vermelha de toda a direita democrática europeia ao celebrar um acordo com um partido da extrema direita xenófoba”.
Ora, goste-se ou não da solução, parece-me de elementar bom senso reter meia dúzia de ideias que me parecem lineares na análise do facto em apreço.
O Chega é um partido com existência constitucional e legal que, como tal, não pode ser banido do nosso espectro partidário. Por isso, por mais absurdas, ridículas e populistas que sejam as suas ideias e propostas, não pode ser punido pela sua ideologia, pensamento ou expressão. Só os actos ilícitos ou criminais são sancionáveis por lei.
Acresce que o extremismo do Chega à direita é comparável ao extremismo esquerdista do PCP e do BE, que defendem ideologias totalitárias.
Por outro lado, a ascensão do Chega deve-se mais aos erros e defeitos do regime vigente do que às ideias ou mérito das propostas que apresenta. E também à circunstância de a direita e o centro-direita não terem sido capazes de se unir em torno de um projecto comum de reformas estruturais de que o país carece e de federar os portugueses num desígnio estratégico nacional em que a grande maioria dos cidadãos se possa rever.
De resto, o acordo de incidência parlamentar celebrado com o Chega não põe em risco os alicerces do regime. E está longe de representar um caso único no panorama da direita democrática europeia. Podem citar-se, entre outros, os casos da Liga, em Itália, que chegou a alcançar o poder com o Movimento 5 Estrelas; do Partido da Liberdade, da Áustria, que integrou a coligação chefiada pelos conservadores; do Partido Povo Dinamarquês, que aceitou um acordo de apoio parlamentar ao governo de coligação com liberais e Partido Popular Conservador; e da “Aliança dos Cidadãos Descontentes”, da República Checa, que se coligaram com os sociais-democratas, com quem formaram governo.
Por tudo quanto vem de dizer-se, julgo manifestamente excessivas as reacções à nova solução governativa açoriana que, a meu ver, só podem compreender-se pelo pânico que se instalou à esquerda pelo receio de uma eventual e iminente perda de poder ao nível nacional e em determinados sectores da direita, receosos de que um acordo semelhante nas próximas eleições legislativas possa levar Rui Rio a primeiro-ministro e Francisco Rodrigues dos Santos a um lugar ministerial de relevo.
O problema, afinal, não é do acordo em si. A pretensa gravidade do “chega para cá” regional reside tão-só nas consequências que pode ter num “chega para lá” nacional ao governo socialista e às esquerdas radicais que, desde 2015, o vem sustentando no poder.
Autor: António Brochado Pedras