O futebol europeu de alta competição reparte-se hoje, frequentemente, nos jornais, pelas páginas de desporto e pelas dos casos de polícia e de tribunais. As histórias de malfeitorias financeiras de presidentes de clubes (em relação às quais há sempre uma condescendência pública que não existe se os protagonistas forem outros) e as ocorrências de violência clubística (tão banalizada que não suscita qualquer incómodo significativo) são tão abundantes que seria fastidioso enumerá-las. Mas há um interessante afloramento de um caso que, não extravasando o campo desportivo, esclarece adequadamente como funcionam os mecanismos do poder e o papel que as redes sociais são instadas a desempenhar para o fortalecer. A história tem um protagonista, o presidente do Futbol Club Barcelona, Josep Maria Bartomeu, e algumas personagens secundárias.
O diário espanhol El País [1] indica que tudo terá começado ou tudo se terá acelerado no dia 2 de Outubro de 2017, um dia depois do referendo sobre a independência da Catalunha, quando um empresário chamou a atenção do presidente do Barça para o facto de o espelho das redes sociais lhe estar a devolver uma imagem devastadora para a sua liderança: “86% de comentários negativos”.
Remediar a situação significava lavar a imagem de Josep Maria Bartomeu. Para isso, o empresário intermediaria um negócio simples a troco de uma “percentagem”, não quantificada pelo jornal espanhol. O negócio, que consistiria na contratação dos serviços de uma empresa de comunicação, está contabilizado. Entre 2017 e 2020, terão sido despendidos 2,3 milhões de euros, segundo uma estimativa da polícia catalã, os Mossos d’Esquadra. Ainda em 2017, o Barça assinou cinco contratos, cada um por um preço ligeiramente inferior a 200 mil euros, para assim contornar a necessidade de pedir autorização ao conselho de administração.
O trabalho da empresa de comunicação contratado pelo presidente do Futbol Club Barcelona não foi, digamos assim, moralmente irrepreensível. Os serviços incluíram a criação de contas em redes sociais, que serviram para “melhorar a imagem e reputação” de Josep Maria Bartomeu. Mas, simultaneamente, foram usadas para “difamar pessoas críticas” da gestão do clube. Jogadores ou ex-jogadores, como Lionel Messi, Gerard Piqué e Xavi Hernández, treinadores, como Pep Guardiola, ou empresários dos media, como Jaume Roures, foram alguns dos visados pelos movimentadores de perfis instrumentalizados e falsos no Facebook e no Twitter. Quem, de qualquer modo, representasse uma ameaça era amesquinhado.
O jornal El País publica elucidativas declarações de trabalhadores da empresa de comunicação. Uns tinham o encargo de publicar nos vários perfis nas redes sociais, que tinham designações como “Respeto y Deporte”, “Sport Leaks”, “Alter Sports”, “Més que un club”, “Jaume un film de terror” e “Justicia y diálogo en el deporte”, textos encomiásticos do chefe do clube ou difamatórios dos seus críticos, outros deviam monitorizar o que os mais incómodos publicavam nas redes sociais, outros ainda estavam incumbidos de criar memes satíricos que fossem virais.
Sendo testemunhos ou confissões dos próprios agentes dos falseamentos, as afirmações são particularmente eloquentes sobre a instrumentalização das redes sociais por profissionais de guerrilha mediática, sobre os negócios hoje assentes na manipulação da comunicação e sobre a ausência de quaisquer escrúpulos por parte de tantos que se pretendem manter no poder.
Sejam ou não provadas, as acusações contra Josep Maria Bartomeu são suficientemente exemplificativas do nível de degradação do dirigismo futebolístico, dessa singular ideologia de gestão que consiste em usar os clubes para proveito pessoal. O procedimento deveria merecer uma censura social vasta e veemente, mas a circunstância de as instâncias policiais e judiciais não se coibirem de investigar, julgar e punir os crimes cometidos nos subúrbios do mundo futebolístico oferece já um motivo de regozijo.
[1] “Los testimonios del ‘Barçagate’ cercan a Bartomeu”. El País, 3 de Março de 2021 e “‘Barçagate’: cómo medir el ‘sentimiento’ del público hacia Bartomeu”. El País, 5 de Março de 2021.
Destaque
O procedimento deveria merecer uma censura social vasta e veemente, mas a circunstância de as instâncias policiais e judiciais não se coibirem de investigar, julgar e punir os crimes cometidos nos subúrbios do mundo futebolístico oferece já um motivo de regozijo.
Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes