O conta-gotas do desconfinamento deixou cair as primeiras gotas e recreou uma páscoa, isto é, uma ressurreição de dias mortos do presente; mostrou-nos como as pessoas se sentem quando privadas de coisas que, nos tempos despreocupados, nos parecem banais: cortar, pintar, alisar, ondear os cabelos foi tão apreciado como se fossem amêndoas ou o pão-de-ló da época. E ao olhar com atenção para os rostos dos transeuntes e ver estampado o prazer de andar ao sol, em liberdade, naquela satisfação que só o desejo satisfeito proporciona, não precisa o cronista de inventar ou esticar o texto. Os testemunhos ouvidos nas televisões de várias pessoas, eram de satisfação pelo que se passava e também anseio pelo regresso da normalidade. A liberdade é isto mesmo, é nas coisas comuns, no dia-a-dia da azáfama de ir e vir do emprego, de levar os filhos aos estabelecimentos de ensino, que dão razão de ser livre. Os que defendem regimes fortes ou autoritários podiam ver quanto apreciamos ir tomar um café sem olhar com medo de qualquer esbirro que, a troco de trocos, aponta, denuncia e semeia a prisão a pessoas inocentes ou comprometidas com a liberdade. Olho para a gente que se sentou nos bancos da avenida central sem ser preciso rebentar com as fitas da polícia e fico-me a pensar que nunca se desobedece a nada, nem a ninguém, a não ser quando as ordens são injustas. Porque é nestes gestos simples, nesta habituação quase inconsciente que praticamos durante os dias sempre iguais, que o cidadão comum se encontra com a sua cidadania e reencontra consigo como pessoa. Um hino à liberdade é o que estes testemunhos nos dão e, por isso, não estranho que as raízes levantem os passeios para fugirem da prisão da terra, ou as águas dos rios galguem as margens para correrem por outros leitos ou as nuvens despejem a chuva quando muito bem lhes apetece. Passava por mim um casal de velhos, velhos conhecidos: mãos dadas para se ampararem e disse-me ele: muito bem me sabia ir tomar um cafezinho na esplanada, num dos cafés das arcadas! Estar ali sentado, ver as pessoas que passam, saborear o beijo da aragem morna desta primavera que se anuncia, é um prazer tão íntimo que o não trocava por coisa nenhuma. Mais uns dias e tudo voltará, disse-lhe. E ele, esfregando as mãos enrugadas de velho, levantou os olhos marotos para mim e apontou para diante e disse-me: bem-aventurados aqueles que acreditam sem ver e mal daqueles que só acreditam vendo. Eu pertenço a este lote. Deu para perceber que este senhor velho não acredita em dias melhores e não acredita porque ali perto, para o sítio para onde apontou, estava um grupo de homens sem máscara ou distância social, fazendo um “comício” ou “assembleia-geral” sobre futebol. Eu sei que não pode haver um agente de autoridade em cada esquina, mas nas arcadas, nas barbas da autoridade, no lugar mais visitado desta cidade, não haverá ao menos um agente de autoridade, que por ali se passeie para impor as regras que a lei impõe a toda a gente? Um só que fosse era bom. Polícias municipais, polícias de segurança pública, nem um só para amostra?! Assim não custa prevaricar.
Autor: Paulo Fafe