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As pedras da poesia

O Dia Mundial da Poesia celebra-se hoje. Em diversos lugares a efeméride será, talvez, aproveitada para tirar da estante alguma antologia de poemas sobre o amor, os gatos, o mar ou a saudade. Sobre pedras, não há ainda qualquer colectânea e, no entanto, há sobre elas memoráveis poemas. O mais famoso é, com certeza, “Pedra filosofal”, de António Gedeão. A voz de Manuel Freire transformou-o, no início dos anos 70 do século XX, numa poderosa canção de resistência à ditadura fascista.

Pedra muito diferente é a do poema “Como tu”, de Léon Felipe, também muito conhecida graças a ter sido cantado, pela mesma altura, por Paco Ibañez: “Assim é minha vida, / pedra, / como tu; como tu, / pedra pequena; / como tu, / pedra ligeira; / como tu, / calhau que rolas / pelos passeios / e pelos caminhos; / como tu, / cascalho humilde das estradas; / como tu, / que em dias de tempestade / te afundas / na lama da terra / e logo / cintilas / sob os cascos / e sob as rodas; / como tu, que não serviste / para ser nem pedra / de um Mercado, / nem pedra de um Tribunal, / nem pedra de um Palácio, / nem pedra de uma Igreja; / como tu, / pedra aventureira; / como tu, / que, talvez, estejas talhada / apenas para uma funda, / pedra pequena / e / ligeira...” [1]

Outra pedra célebre foi cantada por Milton Nascimento: “No meio do meu caminho / Sempre haverá uma pedra / Plantarei a minha casa / Numa cidade de pedra // Itamarandiba, pedra comida / Pedra miúda rolando sem vida / Como é miúda e quase sem brilho / A vida do povo que mora no vale // No caminho dessa cidade / Passarás por Turmalina / Sonharás com Pedra Azul / Viverás em Diamantina // No caminho dessa cidade / As mulheres são morenas / Os homens serão felizes / Como se fossem meninos” [2]. Nesta “Itamarandiba”, de Fernando Brant, ressoa um verso de “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. // Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.” [3]

Em “Agora, ó José”, também Adélia Prado glosa a pedra de Carlos Drummond de Andrade e outra pedra mais ferverosamente recordada [4]: “É teu destino, ó José, / a esta hora da tarde, / se encostar na parede, / as mãos para trás. / Teu paletó abotoado / de outro frio te guarda, / enfeita com três botões / tua paciência dura. / A mulher que tens, tão histérica, / tão histórica, desanima. / Mas, ó José, o que fazes? / Passeias no quarteirão / o teu passeio maneiro / e olhas assim e pensas, / o modo de olhar tão pálido. / Por improvável não conta / O que tu sentes, José? / O que te salva da vida / é a vida mesma, ó José, / e o que sobre ela está escrito / a rogo de tua fé: / ‘No meio do caminho tinha uma pedra’ / ‘Tu és pedra e sobre esta pedra’. / A pedra, ó José, a pedra. / Resiste, ó José. Deita, José, / Dorme com tua mulher, / gira a aldraba de ferro pesadíssima. / O reino do céu é semelhante a um homem / como você, José.” [5]

Quando olho pedra e vejo pedra mesmo, só estou vendo a aparência. Quando a pedra me põe confusa de estranhamento e beleza, eu a estou vendo em sua realidade que nunca é apenas física. A aparência diz pouco. Só a poesia mostra o real”, disse Adélia Prado numa entrevista concedida a O Estado de São Paulo em 2014. É necessário, portanto, saber olhar para uma pedra, matéria de que se ocupou João Cabral de Melo Neto em “A educação pela pedra”: “Uma educação pela pedra: por lições; / para aprender da pedra, frequentá-la; / captar sua voz inenfática, impessoal / (pela de dicção ela começa as aulas). / A lição de moral, sua resistência fria / ao que flui e a fluir, a ser maleada; / a de poética, sua carnadura concreta; / a de economia, seu adensar-se compacta: / lições da pedra (de fora para dentro, / cartilha muda), para quem soletrá-la. // Outra educação pela pedra: no Sertão / (de dentro para fora, e pré-didática). / No Sertão a pedra não sabe lecionar, / e se lecionasse, não ensinaria nada; / lá não se aprende a pedra: lá a pedra, / uma pedra de nascença, entranha a alma.” [6]

Entranhar a alma, eis também para o que serve a poesia. A pedra da poesia, às vezes.

[1] Léon Felipe – Poesía completa. Madrid: Visor Libros, 2010

[2] Milton Nascimento – Sentinela. Ariola, 1980

[3] Carlos Drummond de Andrade – 60 Anos de poesia. Lisboa: O Jornal, 1985

[4] Às pedras na Bíblia, dedica Herculano Alves um muito elucidativo capítulo de 50 Símbolos na Bíblia (Fátima: Difusora Bíblica, 2017. 3.ª edição)

[5] Adélia Prado – Poesia reunida. São Paulo: Arx, 1991

[6] João Cabral de Melo Neto – Poesia completa 1940-1980. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986


Autor: Eduardo Jorge Madureira Lopes
DM

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21 março 2021