1. No artigo anterior já expressei o meu pasmo com a aprovação duma lei intitulada “Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital”, susceptível de instaurar um regime de vigilância e de controlo da liberdade de expressão – uma censura a posteriori. Recorde-se o art.º 6.º, onde se considera "desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos". E prescreve-se: "O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos (…) e incentiva a atribuição de selos de qualidade (…)". Se assim for, teremos o Estado a pagar mais empregos políticos e a erigir toda uma maquinaria de vigilância e de denúncia de pensamentos, convicções e condutas.
2. Ora, há dias (dia 20), por proposta da IL e do CDS, votou-se na Assembleia da República a revogação desse art.º 6.º, que foi apoiada pelo PSD, PCP, PEV, Chega e 5 deputados do PS; porém, o voto contra do PS, Bloco, PAN e uma deputada, obstaram a essa revogação. Saúdo os 5 deputados socialistas – Jorge Lacão, Sérgio Pinto, Marcos Perestrello, Pedro Vasconcelos, Ascenso Simões –, figuras relevantes do PS, não seguidistas de directivas partidárias, fazendo ainda declarações de voto, onde salientam como se recorreu a "conceitos indeterminados", susceptíveis de "instituir um novo tipo de constrangimento da liberdade de opinião", alertando assim para uma "forma de condicionamento ou constrangimento da liberdade de expressão" – que já denunciámos aqui em “Areopagítica” (1). Recorde-se que a institucionalização dessas entidades verificadoras e a atribuição de selos de qualidade, ao arrepio dos princípios da liberdade de expressão, não se verifica em nenhum dos 27 Estados da União Europeia, pelo que é uma originalidade portuguesa.
3. Em 1644, John Milton (1608-1674) escreveu “Areopagítica: Discurso ao Parlamento de Inglaterra em defesa da liberdade de imprensa”, exigindo a revogação de disposições censórias (estas, prévias). Este insigne Poeta inglês legou-nos uma das mais vibrantes defesas da liberdade de informação e, portanto, do direito à informação. Milton inspirou-se no discurso homónimo do ateniense Isócrates, proferido no século V a.C., que pretendia restabelecer os grandes debates em Atenas, que se realizavam no “Areopagus” – daí o título da obra.
Areopagítica é uma referência fulcral porque Milton não se fechou na liberdade do seu grupo – não é liberdade – e concebeu a liberdade de informação num plano universal, extensiva a todos, quaisquer que sejam as crenças ou etnias: "Não posso aceitar de ânimo leve que toda a criatividade, toda a arte e engenho, toda a profunda e sólida capacidade judicativa (…), só possam ser abarcadas por uma vintena de crânios". Eis o pedido ao parlamento: "Concedei-me pois, acima de qualquer outra, a liberdade de saber, falar e discutir sem constrangimentos, de acordo com a minha própria consciência".
4. A censura é aí condenada sem sofismas, "por representar, antes de mais, o maior desincentivo e afronta que se pode fazer ao conhecimento e às pessoas cultas". Com humor sarcástico, alega: "se os homens cultos são os primeiros receptores dos livros e, por consequência, os disseminadores dos vícios e erros que deles absorvem, como podemos nós confiar nos próprios censores? A menos que lhes confiramos, ou que eles reclamem para si mesmos, um estatuto de infalibilidade e incorruptibilidade que os coloque acima de todos os outros cidadãos". Com ironia, diz que o mal da censura é que "esses livros que por aí abundam, os mais susceptíveis de corromper tanto a doutrina como a vida, não podem ser suprimidos sem o declínio do saber e de toda a capacidade argumentativa". Deste modo, qualquer actividade censória, prévia ou posterior, "será uma madrasta para a Verdade – antes de mais, por nos tornar incapazes de preservar sequer aquilo que já conhecemos". E aos que hoje querem atribuir “selos de qualidade”, Milton já respondeu: "A verdade e o entendimento não são mercadorias que possam ser monopolizadas e transaccionadas por meio de etiquetas, decretos e normas".
5. Muitos foram já os textos contra a lei aprovada pelo parlamento português (em 17/05) e a favor da revogação do seu famigerado art.º 6º (20/07). A. Barreto escreve hoje no “Público” que "uma autoridade que se ocupa da mentira acaba por se ocupar da verdade", e A. Correia que "a boa informação tem um custo, um preço e não precisa de um selo". É já uma colecção de textos que constitui uma “Nova Areopagítica”, pois, em 2021, há ainda quem não aprendeu as lições de “Areopagítica” (escrito há cerca de 400 anos). Se, 22 séculos depois de Isócrates, Milton lutou pela liberdade de expressão face ao Parlamento inglês, 26 séculos depois, algo de similar se passa com o nosso Parlamento.
O autor não segue o denominado “acordo ortográfico”
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha