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Os sofreres de Blimunda

Viúva, 70 anos, reformada, Blimunda (nome fictício por óbvias razões) tem resistido com imensa dificuldade, direi mesmo, com imensos sofreres aos efeitos nefastos da Covid-19, como sejam a perda de alguns familiares, embora não diretos, e de muitos amigos que soube granjear ao longo de uma vida muitas vezes dura e madrasta; mas, um dos sofreres que não pode deixar também de pesar no seu dia-a-dia é sobretudo a privação, a que está sujeita, do convívio com as pessoas.

Então, sendo uma viúva-alegre, o grupo de amigas a que pertence Blimunda não

deixa de ser muito animado e era o bálsamo retemperador para a sua solidão, desde que marido, homem muito divertido e galhofeiro, inesperadamente a deixou; e, então, quer fizesse chuva, quer fizesse sol, o grupo sempre se reunia, fosse numa esplanada, café ou salão de chá, fosse flanando rua abaixo, rua acima a combater as maleitas da idade.

E, assim, se punha a conversa em dia, se cavaqueava e mexericava, em suma, se dava à ngua como convinha entre mulheres da mesma geração e condição social e com idênticas necessidades e vivências, porque todas reformadas e maioritariamente viúvas, reuniam um bom lote de temas e problemas que iam servindo de mote para animar gostosas cavaqueiras e benfazejas verborreias.

Ora, dotadas pela mãe-natureza, mais do que os homens, com um aparelho fonador bem pródigo e prolixo, servido por um tubo de escape muito generoso, das mulheres se diz que têm língua de palmo, afiada e viperina quando necessário e, por isso, imenso tempo perdem a dar à taramela; e este facto largamente comprovado é por estudos científicos que afirmam ser o hemisfério cerebral feminino da loquacidade bem avantajado.

noutros tempos famosas eram as conversas nos lavadouros públicos, onde as mulheres se entregavam à tarefa de lavagem de roupa suja, própria e alheia; e, daqui, os ditos e dichotes abundantemente saíam e se propalavam como labaredas de incêndio pela vizinhança, a ponto de a sabedoria popular ter como certo que a melhor forma de espalhar mesmo um segredo só segredando-o ao ouvido de uma mulher.

Depois, como não há mulher que sofra de permanente paralalia, sempre ela morre por um bom bate-papo nem que seja com o canário ou o bichano; e se é verdade insofismável que a língua não tem osso, os temas de conversa variados são e adaptam-se a qualquer circunstância e modalidade, seja da coscuvilhice à Iouvaminha, seja da boa à má-língua, o que levou o nosso político, historiador e literato Alexandre Herculano (1810/1872), aquando já no leito da morte e perante o zunzum incessante das mulheres presentes, a proclamar alto e bom som: levem-me daqui as mulheres.

Todavia, embora ainda não haja estudos que o comprovem, pode ser que por aqui passe a razão primeira da maior longevidade das mulheres, face aos homens, como ditam as estatísticas; e isto bem possível é, porque o dom da loquacidade ajuda a libertar toxinas e endorfinas destruidoras do estresse que é, nos conturbados tempos que correm, o inimigo número um do nosso bem-estar e do equilíbrio psicossomático e, consequentemente, social.

Pois bem, sendo nós seres gregários ou seja iminentemente sociais, os tempos pandémicos que vivemos adversos são à convivência e ao gregarismo; e tendo a ciência decretado que, nestas circunstâncias, a reunião de pessoas e a loquacidade que, assim, desenvolvem muito necessárias e úteis são ao bem-estar e ao equilíbrio físico, emocional e mental, muito sofrem as mulheres, muito sofre Biimunda, numa tentativa desesperada de voltarem à normalidade familiar e social, agravada pelo confinamento e distanciamento social que as normas sanitárias a todos nós impõem.

E, então, se tal normalidade reposta fosse, que bom seria vê-las de novo, ao nascer da alva ou ao cair da tarde, nas esplanadas, cafés ou salões de chá, ou rua abaixo, rua acima a darem à ngua voluntariosamente num autêntico exercício de limpeza e lubrificação do tubo fonador tão congestionado pela pandemia; e a Blimunda da nossa história novamente ganhava a vontade e a alegria de viver e punha em dia os mexericos e as fofoquices e, porque não, umas peixeiradazitas que tanto a trazem entupida.

Por isso, abaixo a pandemia e viva a liberdade e o direito das mulheres de darem à ngua e de pôr a conversa em dia, exercitando vivamente e como convém o seu aparelho fonador e dando largas ao respetivo tubo de escape; e, deste modo, garantido estará o regresso da animação, colorido e frenesim geral às esplanadas, cafés e salões de chá, bem como às ruas da nossa cidade.

Então, até de hoje a oito.


Autor: Dinis Salgado
DM

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4 novembro 2020