Os mitos são uma linguagem por símbolos, altamente sedutora, formulações inconscientes que precisam vir à luz. Mitos e símbolos são dois caminhos que se encontram constantemente, complementam-se e transformam-se mutuamente. São pontos nevrálgicos, que falam por si mesmos, contam-se através de narrativas que prevalecem no tempo, partem do conceptual para sugerir sempre mais, são instrumentos poderosos para interpretar o mundo e quando a compreensão nos chega, registámo-los como uma lembrança de um tempo de inocência. O mito do amor romântico teria entrado na Idade Média pela mão de Tristão e Isolda, mas não é este desenrolar mitológico que interessa aqui comentar, mas sim a tradução do seu legado na sociedade, todo um conjunto psicológico tecido em expectativas e idealizações, onde se colocam as pessoas e as realidades em construções “folclóricas” da própria cultura e num cenário a manifestar-se ao nível da inconsciência.
Exemplo disto são os contos de fadas repletos de significados, o sonho de cada ser humano protagonizar uma história de amor-perfeito, amor grandioso de príncipes e princesas, fascinantes histórias daquilo que a humanidade gostaria de experimentar na vida real. Mas, no conto de fadas todo o sofrimento precede um final feliz, um encantamento que tem um tempo limite, lembro a propósito a “Cinderela” que tem a meia-noite, como o tempo limite, para que o amor aconteça! Também a expressão “felizes para sempre” é a maior negação ao processo comum dos seres humanos, quando de amor falamos, são projecções em que o “beijo final” encerra uma história sem esforço e aborrecimentos. Mas a vida real está sempre precária de fadas madrinhas e de destinos de sonho. Ela mostra-nos que não existem transformações mágicas, da mesma forma que os amores-perfeitos, apenas se encontram em jardins! Sugere-me a pergunta: será isto mesmo o desejado? Sapatos de cristal e belas carruagens?
Francamente, não é assim que amamos e queremos ser amados! O amor não pode ser aprisionado, o amor é livre para o crescimento humano, o amor não são projecções inférteis numa realidade onde todos estamos ancorados. Se assim for, temos a génese da frustração como resultado de uma inadequação, mas não há mal algum em sonharmos, o difícil está em continuarmos vivos depois do pedestal das nossas expectativas, é que desde a infância somos preparados para o elevado e não para nos mantermos vivos quando a vida é rasa. Quem nos prepara para os falhanços? Quem nos treina para o último lugar?
A infância é tempo de heróis e dos poderes extraordinários que legitimam o invulgar e um mundo próprio e é assim que crescemos sem nos encalharmos nos limites que envergonham e nos mostram frágeis! Mas, também é verdade que sair do contexto dos heróis requer esforço, por isso recorremos à facilidade de desenvencilhar amores e os fazer permanecer na teimosia de que o círculo é quadrado! O que importa, mesmo, é nunca desfazer o “encanto da Cinderela” e muito menos ver o “Príncipe sapo”. São tantas as histórias registadas no inconsciente colectivo de heróis e de princesas, que alimentam a ilusão constante no tempo, que nos esquecemos que amar é esforço, é empenho e muitas vezes embaraço, é remédio para as nossas imperfeições, é caminho e não meta, é retoque, é um processo constante de construção e reconstrução.
Não quero ferir expectativas mas “amores-perfeitos” apenas são encontrados em jardins! O que temos diante de nós é toda uma contradição da existência que se agudiza porque não encontramos as realidades ideais? É justamente aqui que os cativeiros se estabelecem, que as tragédias ocorrem, que as máscaras se usam e até pessoas se inventem – conheceram-me logo por quem não era! Os “roubos”, por vezes, são tão profundos e mais nada resta do que revestir personagens e abrir a porta a equívocos. Mas, bem diferente será, tudo isto, se “colhermos o amor-perfeito no nosso jardim”, essa florzinha bela e frágil que muito depende do nosso cuidado.
Autor: Sílvia Oliveira
Amores-perfeitos, só no nosso jardim!

DM
28 outubro 2017