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A verdade também mora ao lado…

Vem isto a propósito de um recente artigo de opinião da jornalista Fernanda Câncio acerca das questões da bioética, intitulado “A grande derrota da Igreja Católica” (Diário de Notícias, 13/02/2017). Escreve a autora que, aquando da vitória do Não, no primeiro referendo sobre o aborto (1998), sentiu “raiva” do seu país, mas que já então os resultados indiciavam que “o poder da Igreja Católica era um mito. Os portugueses diziam-se católicos mas não ligavam peva ao que os padres diziam”. 

O segundo referendo (2007), prossegue a articulista, viria a dar-lhe razão, soando “o fim do poder da sacristia e dos seus ditados preconceituosos, cruéis e – diga-se – tão anticristãos”. E conclui, a propósito do actual debate sobre a eutanásia, profetizando uma mudança inelutável, até porque “o número de pessoas que frequentam as igrejas não cessa de diminuir, e os comportamentos que a Igreja Católica reputa de 'errados? e 'pecaminosos? (…) são esmagadoramente maioritários”.

Tenho o máximo respeito por quem defende as suas convicções no espaço público, em vez de se refugiar no cómodo silêncio ou no anonimato das redes sociais. Mas não me parece que isto se deva reduzir a uma guerra de trincheiras, uma espécie de peleja em que os detentores da verdade se vão impor, sem dó nem piedade, a um número cada vez menor de conservadores lobotomizados pela hierarquia católica. Também não me revejo na postura inversa. E ainda menos que se saboreie por antecipação o fim da “contenda”, esse momento tão esperado em que se “esfrega” o resultado na cara do “adversário”, à maneira do cartaz comemorativo da lei da adopção pelos casais gay (“Jesus também tinha dois pais”). 

Não gosto de partir do pressuposto de que quem não pensa como eu é forçosamente manipulado. Nem me parece que quem não segue à risca os ditames do seu “campo“ deva ser reduzido à figura de mero desertor. A vida humana é uma questão bem mais complexa e valiosa. Mesmo em democracia, continuamos a conviver mal com a diferença e a liberdade de opinião. Não temos de estar de acordo com o outro. Só essa faltava! Os consensos nem sempre são possíveis. Mas o que está em jogo neste tipo de debate não tem a ver com “raiva”, “razão”, “medo” ou “poder”. O que está em jogo é ultrapassar posturas fundamentalistas.

Não é porque outrora a religião se apoderou da esfera política que hoje deve ser arredada do espaço público. Como dizia há já 20 anos Paul Ricoeur, precisamente a propósito da eutanásia, crentes e não-crentes partilham uma preocupação comum pela dignidade humana. Há dissensões, mas mais do que reivindicar poder, o que importa é instaurar um debate esclarecido. Confesso porém estar muito céptico quanto à viabilidade de um tal diálogo – com ou sem referendos – quando se trata o interlocutor com desdém ou se lhe nega mesmo a legitimidade de argumentar. Far-nos-ia bem, a muitos de nós, um pouco mais de humildade. Parafraseando o filósofo francês, a verdade também mora ao lado… 

 

Autor: Manuel Antunes da Cunha
DM

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18 fevereiro 2017