Éinquestionável que aquilo que se percebeu da intervenção do sr. Presidente da República, depois dos fogos daquele fatídico domingo, foi um puxão de orelhas ao Governo de António Costa. O Partido Socialista não estava habituado a ser repreendido pelo Presidente e doeu-lhe esta primeira bofetada. Se ela foi politicamente oportuna, ou se foi, como alguns dizem, falta de caráter do Presidente por ter falado num tom e teor que extravasou a amizade, não sei. Pareceu-me, como ainda hoje me parece, que o sr. Presidente deveria guardar para os encontros semanais com o primeiro-ministro as suas chamadas de atenção. Julgamos aqui a olho, e este nem sempre acerta porque vê por palpites. O que sei é que depois disto o Governo acordou, saiu da letargia em que havia mergulhado desde Pedrógão e atuou em força e com sentido de Estado. Saliente-se o isolamento que os seus parceiros de coligação o deixaram no debate na Assembleia da República. Quando chove nem sempre os amigos nos cobrem com o seu guarda-chuva. Houve algum alarido principalmente no Partido Socialista. Não vejo razões para tal agitação. O Presidente da República, no desempenho de suas funções presidenciais, deve alertar o Governo para o que deve e ou carece ser feito. É sinal amarelo que não vermelho. Era expectável que a comunicação social, sempre ávida de comer carne podre, se abatesse sobre este episódio e dela comesse até fartar. Felizmente que alguns socialistas, incluindo o primeiro-ministro, se deram fé de que o melhor caminho era transformar a palmada em palmadinha. E, na verdade, não passou disso. A primeira estalada dói que se farta; além de marcar o sítio onde se apanha, também magoa e machuca a autoestima. E como ela dói! Ora, o Governo, seja ele qual for, tem de se habituar a ver e ter no Presidente da República um pai que lhe ralha quando não vai pelo caminho certo, sem que daí resulte um corte de relações; assim acontece na família, com a relação, pai-filho. O que daqui resulta é ficarmos à espera que o Presidente da República chame sempre a atenção do Governo, embora lhe peçamos, que o faça duma maneira discreta. O espetáculo do espalhafato só serve para encher jornais, alimentar querelas e dar a vida a ganhar a quem ganha dinheiro em comentários, nas televisões. O país precisa de um presidente atento mas prescinde de um presidente espalhafatoso. Gostei do teor da intervenção presidencial mas não gostei da forma. Pode-se acordar alguém sem o estremunhar. Penso que a traição de Marcelo se resumiu, primeiro, a um desempenho necessário, segundo a uma forma desnecessária de o comunicar. Esperemos que tenham aprendido os dois, quer o primeiro-ministro que não deve portar-se como virgem ofendida, quer o Presidente da República que deve portar-se com mais prudência nas suas chamadas de atenção. Portugal não precisa de guerras institucionais.
Autor: Paulo Fafe
“A traição” de Marcelo
DM
6 novembro 2017