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“A Peste”

"O efeito do coronavírus abala a classificação dos livros" – noticiou La Reppublica. Eis os dois mais procurados em Itália: 1. A Peste (1947), do escritor e filósofo franco-argelino Albert Camus (Prémio Nobel da Literatura, 1957), narra uma epidemia que assola Oran (cidade do litoral da Argélia), cujos habitantes levam uma vida pacata até um flagelo dizimar grande parte da população. Se o autor pretendeu uma alegoria da ocupação nazi e do colaboracionismo na França durante a guerra, que causou polémica entre os intelectuais franceses, a obra é polissémica. Assim começa a narrativa: "Na manhã do dia 16 de Abril, o Dr. Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto (...). No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada". E continua: "Foi mais ou menos nessa época que os nossos concidadãos começaram a inquietar-se com o caso, pois, (...) as fábricas e os depósitos vomitaram centenas de cadáveres de ratos. Nalguns casos, foi necessário acabar de matar os bichos, pois a agonia era demasiado longa (...)". E ainda: "A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrer em grupos. Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos humanos. À noite, nos corredores ou nas ruelas, ouviam-se distintamente os seus guinchos de agonia. (…) Vinham também morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés. Os nossos concidadãos, estupefactos, encontravam-nos nos locais mais frequentados da cidade", narra Camus. Os humanos foram infectados e a cidade, posta em quarentena, isolada do mundo, sem os laços familiares, amorosos e de amizade que os moradores tinham com pessoas de fora de Oran. Passados 70 anos, o romance suscita interesse, como refere o director teatral britânico, Neil Bartlett: "Infecção, invasão, pânico, fronteiras fechadas, pode até ser um romance clássico, mas, relendo-o hoje, volta e meia fico com a sensação de ver o telejornal". Rieux (o médico e narrador) devota-se à sua missão, mas o sofrimento sem fim vai entorpecendo os sentimentos. O clímax vem quando Rambert, um jornalista irrequieto, por acaso em Oran, hesita entre ficar e escapar, acabando por, com amigos, lutar contra a peste. A epidemia passa e Oran reabre as portas. No final, o narrador lembra ao leitor que, enquanto festejam com gritos de alegria que explodem de bairro em bairro, os moradores olvidam o passado; e, como a vida imita – quantas vezes – a ficção, esquecem a lucidez das suas palavras finais: "o vírus da peste não morre nem desaparece nunca; pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada, mas virá talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordará os seus ratos para que vão para uma cidade feliz". 2. Ensaio sobre a Cegueira (1995), de José Saramago (o nosso Nobel da Literatura, 1998), ficciona uma epidemia de cegueira, num drama que se passa “em nenhum lugar”, com “pessoas sem nome” – uma reflexão sobre “o que realmente somos” e não “do que pensamos que somos”. A primeira vítima é um cidadão que conduz o seu automóvel, que foi auxiliado, e o contágio começa tal como a perfídia: "Ao oferecer-se para ajudar o cego, o homem que depois lhe roubou o carro não tinha na mira, nesse momento preciso, qualquer intenção malévola". Ora, todo a trama é testemunhada pela “Mulher do Médico” (sem nome), que não é afectada pela epidemia (ao contrário do marido), sendo quem representa a “civilização” (entre cegos, é a única que enxerga, embora esse fardo se torne insuportável). O governo decide colocar os cegos, e suspeitos de contágio, em quarentena, num antigo manicómio, onde em breve a carência de recursos leva ao colapso, com os instintos animais de sobrevivência a aflorarem. A quarentena dura até um incêndio que arruína o edifício, quando a Mulher do Médico, a única que não foi contaminada, percebe que não há mais guardas e que a epidemia tomou conta da cidade. A obra fez-me recordar o Leviatã (1651) do filósofo inglês Hobbes, que aí descreve como o “homem é o lobo do homem”; tal apotegma é densificado, na pena de Saramago, com a busca desenfreada do hedonismo que campeia na sociedade capitalista e massificada. Sobre este romance cruel, cheio de episódios que remetem às necessidades básicas do ser humano, Saramago disse: "É o mundo que existe. Não há nada no livro que não possa ser encontrado no mundo real". Costuma até dizer-se que não há cegueiras, mas cegos, quando a nossa experiência destes tempos vertiginosos nos diz que não há cegos, mas cegueiras. Lê-se no final: "Por que foi que cegamos, não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem". O autor não escreve segundo o denominado “acordo ortográfico”.
Autor: Acílio Estanqueiro Rocha
DM

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11 março 2020