Nem sempre temos noção disso, mas a verdade é que, na linguagem corrente, usamos expressões retiradas das narrativas da Paixão de Jesus. Pretendemos, por esse motivo, contextualizá-las e apresentar o seu sentido, neste início da Semana Santa.
Antes que o galo cante... é uma afirmação de Jesus, no âmbito do anúncio das negações de Pedro (Mc 14, 30; Mt 26, 34; Lc 22, 34). No texto bíblico, sugere que não se levantará o dia, sem que Pedro tenha negado o Mestre. Com alguma ironia à mistura, a linguagem popular serve-se dela para situações em que se percebe que a traição está para acontecer.
Afaste-se de mim este cálice é o pedido que Jesus dirige ao Pai, no Monte das Oliveiras (Mt 26, 39; Mc 14, 36; Lc 22, 42; Jo 18, 11). Na nossa linguagem, a frase assume o sentido genérico de um pedido de alívio, face a um sofrimento que não se consegue suportar ou vencer.
Para pôr a nu a manifestação traiçoeira de afeto, a delação e a hipocrisia, servimo-nos das expressões beijo de Judas ou beijo frio da traição. De facto, foi assim que Judas entregou (traiu) o Mestre (Mc 14, 44; Jo 12, 3), independentemente das motivações que o levaram a agir desse modo. Se, na cultura mediterrânica, o beijo é sinal de amor e mesmo de amizade, percebe-se, nesta afirmação, a perversão do gesto e a gravidade da atitude a que ele dá expressão.
Refere o evangelista João que, depois de ter interrogado Jesus, “Anás mandou-o manietado ao Sumo Sacerdote Caifás” (Jo 18, 24). Andar de Anás para Caifás é uma das expressões que usamos quando, para tratar de um assunto ou resolver um problema, se requer muita burocracia ou não é de todo clara a sequência do processo, sendo preciso dar muitas voltas e bater a muitas portas.
A frase lavar as mãos como Pilatos tem a sua origem no processo do julgamento de Jesus: “Pilatos, vendo que nada conseguia e que o tumulto aumentava cada vez mais, mandou vir água e lavou as mãos na presença da multidão, dizendo: ‘Estou inocente deste sangue. Isso é convosco’” (Mt 27, 24). Trata-se de um gesto que ficou para a história e é lembrado quando alguém não assume a responsabilidade pelas decisões tomadas, fazendo-as recair sobre outrem.
Quando, em Jo 19, 5, Pilatos apresenta Jesus à multidão, diz Ecce homo (“eis o homem”), uma apresentação enfática que significa genericamente “eis a pessoa (em causa)”. Entre nós, usa-se para designar um dos cenários da Paixão e a Procissão de Quinta-Feira Santa.
Quando se fala de suportar os sofrimentos e contrariedades da vida, até ao fim, à semelhança de Jesus, usa-se a expressão levar a cruz ao Calvário. Essa é, aliás, uma das exigências que o Mestre coloca aos seus discípulos (Mt 10, 38; Mc 8, 34). Nalguma situação que gera grande e constante sofrimento ou até para caraterizar uma vida sofrida, servimo-nos da afirmação isto é um calvário.
Na cruz, Jesus afirmou que tudo está consumado (Jo 19, 30). Se, na aceção teológica, sugere que os planos de Deus se cumpriram na totalidade, queremos assim dizer que “tudo acabou”, “não há mais nada a fazer”, ou, em linguagem ainda mais vulgar, “missão cumprida”.
O que escrevi, está escrito (Jo 19, 22) é o que diz Pilatos quando os sumo sacerdotes o contestam, em virtude de ele ter colocado na parte superior da haste vertical da cruz o letreiro “Jesus Nazareno, Rei dos Judeus” (Jo 19, 19), de que os crucifixos fazem memória com as iniciais JNRJ. A afirmação é perentória, designa uma ação definitiva, sem possibilidade de negação ou de alteração. É com esse sentido que a usamos!
Estas expressões revelam que, a par da influência da Bíblia nas artes (pintura, escultura, música, literatura e outras), também se regista algo de semelhante na linguagem corrente e nas expressões com que nos referimos às contrariedades e ao sofrimento com que se tece a nossa vida. Ter consciência disso também nos ajuda a viver melhor a Semana da Paixão do Senhor.
Autor: P. João Alberto Correia