Este título, num primeiro momento, pode sugerir-nos um aforismo popular, «palavras leva-as o vento», que em latim se diz verba volant. E quase de imediato a memória nos sugere o inciso em falta, scripta manent, isto é, as palavras escritas permanecem.
E é assim que nos nossos dias se interpreta esta máxima latina. Porém, a história revela-nos uma origem completamente diversa.
Com efeito, nas grandes bibliotecas da Antiguidade, como foram as de Pérgamo, de Alexandria, de Atenas e, mais tarde, as de Roma, por regra, a leitura era em voz alta: «deparando-se com um texto escrito, o leitor tinha o dever de dar voz às letras silenciosas, scripta, e assim permitir-lhes tornarem-se, na delicada distinção bíblica, verba, palavras faladas – espírito», escreve o ensaísta Albert Manguel, no seu livro Uma História da Leitura (1999: 57).
Hoje, pelo contrário, é a leitura silenciosa que preenche estes espaços. E as origens desta leitura perdem-se na penumbra dos tempos!
Apesar de se ter conhecimento da sua existência em tempos mais recuados, contudo, a primeira notícia segura da leitura silenciosa na literatura ocidental é dada por Santo Agostinho (354-430 d. C.), nas Confissões (VI.3.3) na sequência do registo de uma curiosidade observada na atitude de Santo Ambrósio, enquanto este se entregava ao exercício da leitura.
É este o passo, transcrito da edição vinda a lume na Imprensa Nacional-Casa da Moeda (2000: 220-221): Sed cum legebat oculi ducebantur per paginas… uox autem et língua quiescebant. Saepe cum adessemus… sic eum legentem uidimus tacite et aliter numquam…, isto é, em vernáculo, «Mas, quando lia, os olhos percorriam as páginas… enquanto a voz e a língua se mantinham em silêncio. Muitas vezes, estando nós presentes… assim o vimos ler em silêncio e nunca de outra forma…».
A actividade da leitura, como se vê, implica a existência de letras, que representam sons; daquelas e destes, harmoniosamente casados na linguagem do quotidiano, depende a comunicação em sociedade: «por isso é manifesto que o homem é um animal sociável, mais do que qualquer abelha ou qualquer membro de um rebanho. Com efeito, a natureza nada faz em vão, como afirmamos.
Ora a fala foi dada só ao homem, entre todos os animais. A voz – continua Aristóteles, no seu tratado da Política (1253a), citado a partir de uma tradução da Profa. Rocha Pereira – é um sinal de desgosto ou de agrado, motivo por que dispõem também dela os restantes animais, na medida em que a natureza chegou ao ponto de lhes permitir sentir o desgosto e o agrado, e significá-lo uns aos outros.
A fala, porém, destina-se a declarar o que é útil e o que é prejudicial, assim como o que é justo e injusto. Essa característica é própria do homem, perante os outros animais; consiste em ser o único que tem o sentimento do bem e do mal, da justiça e da injustiça, e assim por diante».
Ora, para comunicarmos, para falarmos, necessitamos de usar sons, simbolizados, na escrita, por palavras, tudo isso numa representação absolutamente convencional, com variação de nação para nação e daí as diferentes línguas.
Mas na base de toda a comunicação estão as Letras. De tão natural que é o seu uso, nem nos apercebemos da sua importância, do seu valor, da sua utilidade!
Autor: António Maria Martins Melo
A inutilidade das Letras! (1)

DM
6 janeiro 2018