Tudo o que fizermos agora, ou melhor, tudo o que deixarmos de fazer, deixará uma marca na nossa pegada social sobre a qual vale a pena refletir, sobretudo se tivermos em linha de conta, tal como aconteceu em 2008, com a falência do banco norte americano Lehman Brothers, que o mundo enfrenta a redução da atividade pessoal e coletiva e que nada será como dantes. Este pressuposto tem um lado positivo sobre o qual importa refletir na medida em que enfrentamos uma luta entre responsabilidade e liberdade. O escritor Milan Kundera resume numa frase o dilema dos seres humanos por estes dias: “Procuramos sempre o peso das responsabilidades, quando o que na verdade almejamos é a liberdade”. A sua obra “A insustentável leveza do ser” inspirou-me para esta crónica, inevitavelmente pela reflexão sobre o significado da existência e o que isso acarreta para o resto do estilo de vida que nos espera. Tal como acontece com todas as tragédias, esta traz consigo uma janela de oportunidade para colocarmos sobre a mesa a redução da nossa pegada social em todas as dimensões. Seremos capazes de avaliar criticamente o modus vivendi até aqui? Seremos capazes de avaliar o desperdício a que sujeitamos a mesma Natureza que agora nos presenteia com a sua força destruidora? E o que poderemos fazer para alterar o que se adivinha ser condição sine qua non do desejo de ser de novo e rapidamente consumidor da cidade, numa crença que nos remete para o provérbio “não há fome que não traga fartura”?
Como a minha natureza não me permite ser otimista militante (prefiro ser realista concomitante), tenho receio de que na primeira alvorada, pós tragédia, voltemos a erguer a euforia e a eleger a gula social como um pecado chamado desejo. O que formos, neste período, feitas as contas no final da contenda, mostrará que no binómio tempo-espaço, ambos se reduziram a um intervalo forçado, porque na natureza humana sobejaz a nossa indiferença perante o peso da responsabilidade individual e coletiva, quando tudo parece normal. A nossa pegada forçosamente está a sofrer uma queda abrupta solidária, que terá reflexos positivos forçados, mas de pouca duração, infelizmente. Se tivermos números, pós-tragédia, perceberemos melhor que a dimensão da nossa pequenez é real e que a fúria que nos invade a todos por agora, é irmã do cenário dantesco sublinhado no “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, um título bem aproveitado pela jornalista Sandra Ferreira, no Jornal de Notícias, para nos explicar como o exemplo de Roma pode catapultar para uma tragédia maior: a de não percebermos e a de não querermos ver que o caminho traçado até aqui não é imperioso para a sobrevivência do homem global, como não será uma narrativa despropositada. Nesta crónica, poderiam subsistir outros parâmetros condizentes com a expectativa de que o intervalo a que nos abrigamos, é apenas consequência da brutalidade vírica. Se assim for, continuaremos a ser uma ameaça para nós próprios. Gostaria de acreditar que o egoísmo entranhado na nossa vida quotidiana será menos acentuado e que a pegada social, que necessariamente terá de encontrar outros caminhos, não deixará de combinar o direito à Liberdade com o peso da Responsabilidade. Duas palavras, dois conceitos que, por agora, parecem emanar da vontade única de sobreviver. Talvez por isso, Ser e Estar nunca tiveram tanto peso na nossa história recente como agora. Mudar de vida pode depender apenas da nossa disponibilidade e da capacidade para sermos mais humildes e menos convencidos de que poderemos continuar “cegos” mesmo que à nossa frente, se erga um espelho que diz tudo sobre a tragédia humana.
Autor: Paulo Sousa