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A deficiência e o abandono de recém-nascidos

A comunicação social, em Portugal, no último mês, deu relevo a dois acontecimentos que muito haviam de chocar os portugueses: o nascimento de uma criança deficiente, o bebé Rodrigo, com malformações graves, que acarretam dificuldades acrescidas para os seus pais e quase tornam inviável a sobrevivência deste recém-nascido. Tudo isto não obstante a parafernália tecnológica que a todos nos acompanha quotidianamente e quase nos convence de que nada de inesperado pode acontecer nas nossas vidas! O controlo da vida ao alcance de um simples clique. A sobranceria de um mundo tecnológico supostamente seguro e a toda a prova! Que nos retira, tantas vezes, a oportunidade de saborear os pequenos gestos, os gestos simples de que se compõe a vida autêntica.

Uns dias mais tarde, nova surpresa chocante e o insólito: um sem-abrigo descobre num caixote do lixo o pequeno Salvador, ali depositado, quem sabe, por mãe em sumo desespero. Não obstante os achaques naturais das circunstâncias, o bebé recupera satisfatoriamente em unidade hospitalar e parece em perfeitas condições de saúde.

Duas situações paradoxais, a merecer reflexão, numa sociedade marcada por um envelhecimento galopante e tendencialmente fechada ao acolhimento da diferença.

Tudo isto vem a propósito da celebração do dia internacional da pessoa deficiente, celebrado no passado dia 3 de Dezembro.

Desde muito cedo que a Humanidade foi confrontada com a realidade da deficiência, isto é, com a existência de pessoas que apresentam um qualquer tipo de perda ou anormalidade que limita as funções físicas, sensoriais ou intelectuais, para usar termos próprios da área da medicina e, por isso mesmo, mais objectivos. Nos seus primórdios, e ainda num tempo em que a pessoa humana não tinha explicações racionais para todos os eventos da natureza, tantas vezes o Homem se refugiou em explicações mitológicas, ou seja, narrativas simbólicas que procuram dar resposta ao quotidiano, cujos fenómenos nem sempre eram compreensíveis à luz da razão humana. E é por isso que nestes textos assume capital importância a intervenção do mundo divino, no contexto de uma sociedade marcada por uma religião politeísta, como eram as sociedades da Antiguidade Clássica, tanto na Grécia como em Roma. Ora é na cultura minóica, em Creta, uma ilha situada no mar Mediterrâneo, a sul da Grécia, que nos surpreende a história fantástica do Minotauro. Relata-nos este mito o dramático destino de um monstro, nascido de uma relação entre Pasifae, esposa de Minos, rei de Creta, e um touro que Poseídon, deus dos mares, tinha enviado a este rei. Este monstro tinha corpo de homem e cabeça de touro e daí chamar-se Minotauro. Envergonhado com o nascimento deste ser, Minos vai ordenar ao artista ateniense Dédalo a construção de um palácio, o Labirinto, onde encarcerou o monstro. Apesar de impossibilitado de sair deste local, este monstro exercia tal domínio que, segunda lenda, todos os anos devorava catorze jovens, tributo pago pela cidade de Atenas. E seria Teseu, um dos jovens a caminho do suplício, que, com a ajuda da bela Ariadne, havia de matar o monstro e reencontrar a luz do dia, depois de vencer as dificuldades do intrincado caminho formado por inúmeros corredores e salas.

Na verdade, nas sociedades antigas, os filhos deficientes, por regra, eram abandonados à sua sorte. É assim que, em Esparta, cidade da Grécia Antiga, todos os recém-nascidos com malformações eram precipitados do alto do monte Taígeto. No tratado de Platão, A República (460c), aos filhos disformes, nomeadamente das classes inferiores, ordena-se que sejam escondidos em «lugar interdito e oculto, como convém». Pensamento idêntico se pode ler em Aristóteles, no seu tratado a Política.

Esta forma de pensar e agir também tem os seus reflexos em textos bíblicos contemporâneos, como se poder ler num dos livros do Pentateuco, o Levítico (21.17-24), quando Deus se dirige a Moisés e lhe prescreve que «todo aquele que tiver alguma deformidade não poderá apresentar as ofertas: um cego ou coxo, um desfigurado ou deformado; um aleijado dos pés ou das mãos, um corcunda ou um anão, aquele que tiver uma névoa no olho ou sarna…». Um texto que deve ser lido à luz das circunstâncias que rodearam a escrita do Antigo Testamento.

Na Roma Antiga, pode ler-se, por exemplo, na Lei das Doze Tábuas, que o pai tinha o direito de matar imediatamente, após o nascimento, o seu filho disforme. O que podia ser feito de diferentes maneiras: abandoná-lo nos lugares sagrados; arrojá-lo contra a Rocha Tarpeia, que se situava por trás do capitólio, ou então abandoná-lo, num cesto, ao sabor da corrente do rio Tibre, como nos relata a tradição. Foi assim, como se sabe, que, segundo a lenda, se salvaram Rómulo e Remo, fundadores de Roma. Mais tarde, durante o Império Romano, sob a influência do cristianismo, a deficiência começou a ser olhada com outro sentir.

Na actualidade, não nos faltam testemunhos de resiliência, como aqueles dois com que abrimos esta reflexão. E isto não obstante a limitação ser de difícil aceitação numa sociedade que parece feita exclusivamente para o sucesso, sem espaço para as manifestações imprevistas da finitude humana. Entre nós, não faltam exemplos de abnegada dedicação, pais que lutam diariamente, irmãos e familiares que não desistem; com eles, muitos de nós, que não paramos de nos queixar, com eles, repito, muito teríamos a aprender. É com estes exemplos, aliados aos apoios públicos, escassos, mas que existem, que todos os dias acontecem milagres! E é assim que a esperança renasce todos os dias.


Autor: António Maria Martins Melo
DM

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7 dezembro 2019