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A Corte e a República

Na história política dos últimos séculos, no espaço do hoje designado Mundo Ocidental, de raiz europeia, a monarquia e a república destacam-se como regimes concorrentes, ainda que de feição menos ou mais democrática. Num raciocínio apriorístico, e atendendo à origem etimológica do conceito, a monarquia, porque evocando o “governo de um só, insinua-se como menos afim da democracia face à república, que remete para a “coisa pública”.

Não obstante algumas das democracias mais evoluídas e solidárias na Europa, a noroeste, estarem hoje estabelecidas em países com regimes monárquicos, todos os leitores se lembrarão de como na França de Luís XIV – falecido em 1715, após um reinado de mais de meio século – o poder do rei se impunha de forma absoluta sobre todos os seus súbditos.

O duque Saint-Simon, cortesão de Luís XIV, nas suas memórias esclarece que à época todos os que aspiravam a uma posição privilegiada tinham que frequentar a corte deste monarca:(…)no seu acordar, no seu deitar, nas suas refeições, nos jardins de Versalhes (…) nada lhe escapava[a Luís XIV ],via toda a gente. (…) Quem raramente ou nunca comparecia na corte estava certo de incorrer no seu desagrado. Se fosse instado a conceder um favor a tais pessoas, responderia altivamente: “não o conheço”. (…) E desta sentença não havia apelação. (…).Três quartos de século depois, umdescendente de Luís XIV acabaria guilhotinado (Luís XVI) na voragem da Revolução Francesa, que sepultaria o Antigo Regime. A monarquia ainda voltaria a França, até que desaparecesse em definitivo já na segunda metade do século XIX.

A república, que precedera o regime imperial romano, que se estendera por algumas cidades-estado, designadamente na Península Itálica, só se tornará hegemónica na paisagem política europeia após a 1.ª Guerra Mundial. Mas a república propagandeou-se, insinuou-se sempre, como envolta numa aura de justiça e equidade (e como marca identitária registaria também na lei o princípio que vincula o acesso à generalidade dos cargos na administração do estado à prévia existência de um concurso público aberto aos cidadãos nacionais).

As últimas notícias não têm sido boas para o atual governo socialista. Confrontada com indicadores globalmente favoráveis para a governação de António Costa (diminuição do desemprego, da dívida pública e dos juros, com o correlativo e persistente crescimento económico, ainda que modesto, a despeito das muitas greves), a oposição foi agora brindada com o desvelar de uma “corte socialista”, marcada pelas profusas ligações familiares em vários cargos governamentais. Depois de marido e mulher, de pai e filha no mesmo governo – coisa invulgar – todas a nomeações para os gabinetes ministeriais têm sido alvo de cerrado escrutínio, com particular gáudio nos setores mais à direita, na procura de mais laços familiares.

O caso não é bonito e propiciará urticária a muito eleitores, particularmente entre os mais exigentes ou entre os mais voláteis nas suas escolhas (e há eleições europeias à porta). Da parte do governo, poder-se-á sempre alegar que o fenómeno remete para o curso normal da meritocracia e pode ainda, justamente, lembrar-se que para cargos de nomeação política releva sempre a confiança depositada nos escolhidos. E, ademais, agora talvez nem seja fácil recrutar interessados para o serviço público na capital.

Atendendo ao valor das rendas da habitação em Lisboa, muitos dos que estejam aceitavelmente instalados na “província” não estarão sequer interessados no convite para um cargo político nesta cidade.

Se recuarmos para governos passados, designadamente da responsabilidade do PSD, o principal partido “litigante” neste caso, esmiuçada a análise das nomeações então observadas, não faltarão também referências a reter (os manos Beleza, os tio e sobrinho Durão, na governação, a par dos inevitáveis casos de diplomas universitários heterodoxos ou forjados, uma “praga” quase pan-europeia entre políticos, à esquerda e à direita).

Na administração municipal, os casos de nepotismo ou de corrupção alimentam recorrentes denúncias na comunicação social, ainda que a atual restrição legal do número de mandatos presidenciais tenda a atenuar o fenómeno.

A atividade política, nobre na sua essência porque se destina a servir a comunidade, colhe pouca simpatia geral e a militância partidária escasseia. Tudo conjugado, em diversas estruturas partidárias locais repetem-se lideranças ou enraízam-se dinastias alimentadas por curtas bases eleitorais internas ou por fenómenos de caciquismo.

E desprestigiante ainda para a imagem da democracia é a transição de ex-governantes para cargos bem pagos no setor privado conectado com a área que anteriormente tutelavam.

Portugal, um país pequeno, com elites escassas, estará condenado à constituição de castas governativas ou partidárias, lembrarão os mais benévolos, que podem ainda aduzir os exemplos de dinastias de líderes noutros países com mais tradição democrática (os Clinton, os Bush ou, mais diferidos no tempo, os Roosevelt nos EUA, por exemplo).

Hoje vivemos, porém, no tempo frenético das redes sociais e os portugueses estarão menos tolerantes politicamente para com o que considerem desviar-se da ética republicana, expressa ou implícita, ainda que, contraditoriamente, possam estar mais permeáveis ao discurso antidemocrático.

Na Europa, a democracia já viveu melhores dias. Em Portugal, singularmente, o populismo ainda não acertou num trilho atraente, rentável eleitoralmente. Convém, porém, não ignorar os avisos. Não chegámos garantidamente ao “Fim da História”. Os ares da liberdade não têm, em lado algum, estatuto de residente permanente.


Autor: Amadeu Sousa
DM

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9 abril 2019