Não tardaram as reacções de protesto por parte da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), da Comissão para a Igualdade de Género (CIG), de um conjunto de editorialistas e jornalistas, de personalidades públicas e anónimas nas redes sociais, dando corpo a uma verdadeira onda de contestação.
Na senda da Declaração de Munique (1971), o Estatuto do Jornalista (1999) preconiza o respeito pela intimidade e vida privada, evitando, por exemplo, a exposição pública desnecessária por meio de “imagens que atinjam a dignidade das pessoas através da exploração da sua vulnerabilidade psicológica, emocional ou física” (artigo 14 § 2.d). A questão que se coloca nestas matérias é de saber até que ponto o interesse público se sobrepõe ao interesse privado. Por um lado, “uma imagem vale mais do que mil palavras”, diz-nos Confúcio. “Le poids des mots. Le choc des photos”, reza a divisa do semanário Paris-Match. Por outro, o respeito pela dignidade humana é um valor inalienável.
Até que ponto foi/é lícito difundir as imagens – algumas delas premiadas – de Kim Phuc, a menina nua que foge ao bombardeamento com napalm da aldeia vietnamita de Trang Bang (1972), da agonia da adolescente colombiana Omayra Sanchez nos escombros de Armero-Guayabal (1985), da menina esquelética prostrada em Ayod, no Sudão, junto de um abutre (1993), de pessoas que saltam para a morte no World Trade Center (2001), da tortura de prisioneiros iraquianos na prisão de Abou-Ghraïb (2004) ou do menino sírio Aylan Kurdi morto numa praia turca (2015), para evocar apenas alguns casos mais mediáticos?
Não sou leitor do CM, nem faço parte das audiências da CMTV. Não me revejo nestes órgãos de comunicação social, mas concebo perfeitamente que haja quem com eles se identifique. Neste caso específico, considero escusada a publicação de um vídeo que a, a meu ver, não traz nenhum valor acrescentado em termos informativos e/ou de interesse público. Creio, todavia, que esta vaga de fundo contra os dois media de cariz mais sensacionalista constitui, até certo ponto, um rito de purificação social que as colectividades primitivas já consubstanciavam na cerimónia do bode expiatório: aquele que é imolado em expiação pelas faltas de todos.
Quando olhamos para a (in)dependência do nosso jornalismo político, económico e desportivo – mas também para as condições de trabalho cada vez mais precárias no sector – continua a ser um milagre quotidiano que ainda haja algum trabalho e alguns jornalistas de primeira água, no meio de tantos atropelos à deontologia (não respeito pela vida privada, falta de integridade e de independência, plágios, não respeito pela presunção de inocência, não diversificação das fontes, etc.). Embora saiba que estou a contracorrente, apetece-me dizer que, neste contexto, o mais fácil ainda é bater no Correio da Manhã.
Autor: Manuel Antunes da Cunha