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A cidade antípoda

Nas últimas semanas tem sido recorrente a abordagem de vários analistas e especialistas sobre o verdadeiro impacto de uma tragédia anunciada no futuro próximo, seja na economia, seja na sustentabilidade social. Uma das raras posições de convergência maioritária, subscrita por, pelo menos, 15 países, apelava à Comissão Europeia para que infletisse a sua posição quanto ao modelo de recuperação económica, apostando antes na convergência antecipada com as metas definidas para a Sustentabilidade Ambiental. Esta semana, nos antípodas da visão em vigor, foi conhecido o exemplo do governo local de Amesterdão. Ficamos a saber, que ao contrário do que pensa o governo dos Países Baixos, naquela cidade, ouviu-se e assimilou-se a tese do economista da Universidade de Oxford, Kate Raworth: primeiro o bem-estar das pessoas e o Ambiente e só depois o Produto Interno Bruto. A proposta deste académico é simples: aplicar o conceito de Donut àquele território, o que traduzido em linguagem que todos possamos entender, significa que “não é a sociedade e o ambiente que se adaptam à economia, mas sim, a economia às necessidades sociais e ambientais”. Raworth caracteriza por analogia os diferentes espaços do Donut – buraco, zona da cobertura exterior e a massa fofa, comprando-as com a situação real do território e das pessoas de Amesterdão. Junto do buraco reside o mínimo necessário a uma vida digna, desde o acesso às infraestruturas básicas, à educação e saúde. Os que não tem nada disto, ou apenas parte dos mínimos, vivem no buraco, abaixo do limitar da pobreza, portanto. No lado exterior estão os recursos limite do planeta, sem comprometer a sustentabilidade, enquanto no recheio reside o espaço onde se pode habitar de forma segura e prosperar. Marieke van Doorninck, vice mayor da cidade explica esta aparente divergência do senso comum em que todos habitamos e que nos diz que precisamos de fazer crescer o PIB para termos os recursos necessários na demanda da ambicionada sustentabilidade. A autarca acredita que “o donut não nos traz as respostas”, mas ajuda a “olhar” para os problemas de uma forma diferente e impede que se regresse "às mesmas estruturas". De que falamos: passar de uma visão “degenerativa” da economia para uma dimensão regenerativa e distributiva”. Na sociedade holandesa, os problemas estruturais para o alcançar são enormes, começando logo pelo fosso no acesso ao bem-estar, já que uma em cada cinco famílias vive dos apoios do Estado. Encarar este problema, apontando soluções duradouras, é agora o lema de uma das cidades mais avançadas quer nos processos tecnológicos, quer na sustentabilidade ambiental. E tal como acontece em muitas outras urbes do velho Continente, Amesterdão tem uma lista de empreitadas considerável, seja na área do acesso à habitação, na pobreza ou na dependência do seu porto marítimo dos combustíveis fósseis. E para todos eles, começa a ser desenhada uma solução convergente e inteligente. Resta saber como é que cada um de nós olha para o seu Donut e o que é que está disponível a fazer para sair do buraco. Será que podemos pensar e agir diferente, ou teremos de aceitar as regras ditadas pelas necessidades financeiras. Uma das questões que a nova equação coloca é que o cálculo do PIN não mede nem as necessidades da sustentabilidade nem as da convergência social, pelo que será legitimo perguntar se esta não é uma altura para que as universidades e os decisores políticos repensem os modelos de crescimento económico, baseados no consumo insustentável. Em Portugal, as condições para pensar em público o desafio de Raworth são ténues, mas há que admitir que pela primeira vez há uma convergência conjuntural que pode impulsionar o aparecimento, não necessariamente de um Donut, mas de uma bola de Berlim onde a camada exterior é tão rica quanto o seu recheio, na medida em que se torna inclusiva e duradoura. Se este for o caminho, seremos pioneiros não de uma solução mágica e rápida dos problemas, mas da tomada de consciência coletiva, de que se não mudarmos, seremos empurrados para o abismo, ou se quiserem tendencialmente atraídos e engolidos pelo buraco.


Autor: Paulo Sousa
DM

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19 abril 2020