Por causa das restrições deste fim de semana, é já hoje de manhã que em muitos locais de culto se fará menção da Mensagem do papa Francisco para o IV Dia Mundial dos Pobres, que ocorre neste fim de semana.
A mensagem deste ano parte de uma citação do Sirácide (7,32): «Estende a tua mão ao pobre». Francisco afirma que «são inseparáveis a oração a Deus e a solidariedade com os pobres e os enfermos». Mas o tempo dedicado à oração não pode ser um álibi para descuidar o próximo. Pelo contrário: «a bênção do Senhor desce sobre nós e a oração alcança o seu objectivo, quando são acompanhadas pelo serviço dos pobres».
É difícil manter o olhar voltado para o pobre, mas absolutamente necessário para imprimir a justa direcção à nossa vida pessoal e social, «porque os pobres estão e sempre estarão connosco para nos ajudar a acolher a companhia de Cristo na existência do dia a dia», acrescenta Francisco.
Sem viver pessoalmente a pobreza evangélica, não se pode servir de apoio aos pobres. E dentro de nós «existe a capacidade de realizar gestos que dão sentido à vida». Foi aqui que me lembrei do que lemos na eucaristia da passada quinta feira, nesse autêntico Bilhete Postal que é a Carta de Paulo a Filémon. Encarcerado, talvez em Éfeso, escreve a um tal cristão da comunidade de Colossos que tinha vários escravos. Um deles, Onésimo, abandonou Filémon, seu senhor, e foi ter com Paulo ao cárcere, deixando-se cativar pelo seu acolhimento e o seu ensino, a ponto de Paulo o considerar como um filho.
Filémon poderia, legalmente, castigar até com a morte a fuga do escravo, mas Paulo desafia-o, não apenas a receber Onésimo sem qualquer castigo, – quando muito uma multa que o próprio Paulo se compromete a pagar, se for caso para tal –, mas a acolhê-lo como um verdadeiro irmão, como já o era para Paulo. Daí o convite explícito: «A tua participação na fé torne-se operante para que possas conhecer todo o bem que existe entre nós e Cristo» (v. 6). Jogando com o significado de Onésimo em Grego, que é: «útil ou proveitoso», Paulo diz a Filémon: «Peço-te por Onésimo, meu filho, que gerei na prisão, ele que um dia te foi inútil – (isto é, que te abandonou) –, mas que agora é útil para ti e para mim. Reenvio-to, ele a quem tanto quero». Acrescentando: «ele separou-se de ti por momentos; eu reenvio-o para que tu possas reavê-lo para sempre, não já como escravo... mas como um irmão caríssimo, em primeiro lugar para mim, mas ainda mais para ti, quer seja como homem, quer como irmão no Senhor». E assim ele será verdadeiramente Onésimo, isto é, útil para Paulo e útil para Filémon, pois será mais um irmão. A argumentação continua: «Se me consideras teu amigo, acolhe-o como a mim mesmo... Sei que farás ainda mais do que aquilo que te peço».
Certamente que ser escravo era uma enorme pobreza, quer em dignidade, quer em liberdade, senão mesmo acompanhado dos maus tratos e abusos de vária ordem. Paulo incita-nos a erradicar tal estigma da sociedade de então, mas também da de hoje, presente sob diferentes formas: fome e miséria, desemprego, trabalho precário, mal pago e por vezes humilhante, emigração clandestina, falta de cuidados básicos de saúde e educação, de liberdade religiosa, etc. E para isto, Paulo diz-nos que a verdadeira solução é a nossa conversão à luz da Palavra de Deus e a acção de evangelização formando os outros para ascenderem ao patamar da filiação divina e compreenderem e praticarem em cada dia o apelo mais fundamental que Jesus nos ensinou a fazer insistentemente: que Deus seja, cada vez mais, assumido como Pai nosso, pois só assim seremos irmãos e conseguiremos tratar os outros por aquilo que mais os pode dignificar e libertar: irmãos nossos muito amados e queridos.
A mão estendida ao pobre não chega de improviso. «Requer-se um treino diário, que parte da consciência de quanto nós próprios, em primeiro lugar, precisamos de uma mão estendida em nosso favor». A pandemia, fechando-nos no silêncio das nossas casas, obriga-nos a descobrir «como é importante a simplicidade e o manter os olhos fixos no essencial. Amadureceu em nós a exigência de uma nova fraternidade, capaz de ajuda recíproca e estima mútua. Este é um tempo favorável para 'voltar a sentir' que precisamos uns dos outros, que temos uma responsabilidade para com os outros e para com o mundo». É claro que: «o objectivo de cada acção nossa só pode ser o amor... Este amor é partilha, dedicação e serviço, mas começa pela descoberta de que, primeiro, fomos nós amados e despertados para o amor... um sorriso que partilhamos com o pobre é fonte de amor e permite viver na alegria... Neste caminho de encontro diário com os pobres, acompanha-nos a Mãe de Deus que é, mais do que qualquer outra, a Mãe dos pobres».
Autor: Carlos Nuno Vaz
A Carta a Filémon e o IV Dia Mundial dos Pobres

DM
14 novembro 2020