Em Homo Deus (pág. 196), segunda obra da sua trilogia, Harari vê o cristianismo como uma religião criada pelos homens, a partir dos textos da Bíblia, a qual, em seu entender, é «um livro recheado de ficções, mitos e erros!» Este juízo é particularmente punitivo para o cristianismo, reduzido apenas a uma dimensão histórica, ultrapassado pelo progresso científico-técnico e rejeitado pelo homem contemporâneo, por ter falhado na resolução dos grandes problemas sociais que afetam a humanidade, tal como outras religiões ou filosofias: «Maomé, Jesus, Buda e Confúcio […] foram incapazes de erradicar a fome, a doença, a pobreza e a guerra.»
Para defender esta tese, Harari encontrou no Evangelho de S. Marcos uma passagem que julgou dar-lhe razão não só quanto a uma pretensa insensibilidade moral de Jesus – e por extensão do cristianismo –, como quanto ao fracasso de uma doutrina religiosa assente em princípios tradicionais e fatalistas. Eis a transcrição: «Na verdade, sempre tereis os pobres convosco e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes o bem, mas a mim nem sempre tereis.» Jesus pronunciou esta admonitória em resposta à censura de que foi alvo quando Maria Madalena lhe perfumou a cabeça com uma essência muito cara, que poderia ser vendida por trezentas moedas de prata. Entre os censores estava Judas, que de imediato foi vender Jesus aos sumos sacerdotes do Templo.
Na segunda das citações, Harari coloca Jesus em plano de igualdade com Maomé, Buda e Confúcio, cometendo uma falha intelectual que nem sequer do ponto de vista da História se compreende, porque Jesus foi muito mais do que um profeta, um pedagogo ou um filósofo. Jesus foi o Verbo Encarnado no meio dos homens, Filho de Deus que se humanizou no seio de uma Virgem e habitou entre nós para selar a Nova Aliança com a humanidade carecida de redenção. Quanto a esta questão da natureza divina de Jesus, atentemos num dos mais extraordinários gnomas cristológicos contidos no Evangelho de S. João (14, 5-7): «Tomé disse a Jesus: “Senhor, não sabemos para onde vais; como poderemos conhecer o caminho?” Jesus respondeu: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vai ao Pai senão por Mim. Se me conheceis, conhecereis também o meu Pai. Desde agora O conheceis e já O Vistes.”»
Jesus Cristo cumpriu a sua missão – o anúncio do Reino de Deus – e regressou ao Pai; Maomé, Buda e Confúcio, porém, não passaram de homens, independentemente dos credos e doutrinas que pregaram na Arábia e na Ásia. Todavia – e não tratando agora dos possíveis programas sociais destes líderes religiosos ou filosóficos –, apesar de o programa de Cristo ser de natureza essencialmente espiritual, voltado para a pregação da vida eterna e a redenção dos pecados, não se pode depreender que Cristo foi indiferente aos problemas da fome, da doença, da pobreza e da guerra. Sendo os males acima referidos uma consequência dos erros dos homens, Jesus Cristo não deixou, porém, de levar à prática os valores do amor, da justiça e da caridade, dando de comer a quem tinha fome, curando os enfermos – e tantos lhe foram apresentados –, mandando dar o salário ao trabalhador, e defendendo a paz, nomeadamente quando pediu a Pedro para meter a espada na bainha, lembrando-lhe: «Não beberei o cálice que o Pai me deu?»
Harari não deve, pois, procurar a causa dos males sociais na incapacidade de ação dos líderes religiosos ou filosóficos, mas no processo histórico-evolutivo da humanidade, sobretudo quando esta deixou de estar organizada em bandos de caçadores-recolectores, que percorriam a floresta e a savana em busca de alimento, e se sedentarizou em sociedades político-económicas de base agrícola e militar, estabelecendo todo um complexo sistema de castas e classes, que vigora até aos dias de hoje. Mas atenção: até nos bandos de caçadores-recolectores havia hierarquias! Significa que a fome, a doença, a pobreza e a guerra são o resultado de o homem se mostrar incapaz de fazer a repartição justa dos recursos disponíveis, de melhorar as condições de vida dos povos que sofrem os efeitos da desigualdade social, e de resolver os conflitos sem o recurso à força das armas.
Se Harari tivesse lido a doutrina social da Igreja veria como o cristianismo defende a justiça económico-laboral atalhando à exploração desenfreada do capitalismo selvagem; como desenvolve amplos programas de apoio social e sanitário junto de povos carecidos de bens essenciais; como espalha missões por todo o mundo subdesenvolvido; e como acolhe e protege refugiados de guerra. Daqui se conclui que Jesus não veio ao mundo para resolver o problema da miséria que afeta a humanidade, porque a sua missão não era governar a sociedade do seu tempo no plano material, conforme lembrou a Pilatos: «O meu reino não é deste mundo.» Apesar disso, Ele apiedou-se e curou leprosos, cegos, paralíticos, possessos…
Mas quem diz que a Bíblia é «um livro recheado de ficções, mitos e erros!» não pode ver em Jesus «a luz do mundo» como o apóstolo João, que ouviu o Mestre dizer: «Quem Me segue não andará nas trevas.»
Autor: Fernando Pinheiro
A Bíblia qualificado como livro de ficções, mitos e erros

DM
20 março 2021