1. O filósofo Bernard-Henri Lévy, conhecido por narrar no terreno as piores guerras (já em tempo aludimos à sua análise da guerra na Ucrânia), conclui assim a sua reportagem da "mais feroz e esquecida das guerras” nas "terras sanguinárias do Sudão" (cf. “Expresso”, 08/08/2025): "Esta terra extenuada de sangue e de sofrimentos, este Sudão com os seus antigos parapeitos e uma civilização ainda mais elevada que a dos faraós, este povo aliado e amigo, merecem algo melhor do que o silêncio ensurdecedor que rodeia a sua tragédia. Recusarmo-nos a ouvir é uma vergonha. Abrir os olhos é um dever". Confirmando a análise do filósofo, lia há dias na imprensa estrangeira este relato conciso de grande crueldade: "Uma maternidade bombardeada cujo tecto desabou sobre bebés que lá estavam; ataques a campos de refugiados, execuções em massa, ruas cheias de cadáveres, bloqueios à ajuda humanitária, abusos sexuais sistemáticos e outros crimes de guerra; desde o início da guerra civil no país no nordeste africano, há cerca de um ano, estima-se que 16.000 pessoas tenham morrido".
2. No coração de África, um país exaurido por décadas de ditadura, golpes e guerras civis, vive hoje uma catástrofe humanitária de proporções inimagináveis, uma das maiores, e o mundo, cúmplice pela inércia, assiste em silêncio. A recente queda de El-Fasher, no Sudão, às mãos das Forças de Apoio Rápido (RSF) do general Hemedti, além de ser uma nova etapa na escalada de violência, mostra como as promessas do “nunca mais”, jurada após o genocídio de 2003 no Darfur, eram apenas palavras vãs e sem significado. Quase 13 milhões de pessoas fugiram de suas casas até agora, com quase 4 milhões cruzando para os países vizinhos – Egipto, Sudão do Sul, Chade, Líbia, Etiópia, República Centro-Africana, e mais além, para Uganda. As pessoas que buscam protecção internacional relatam experiências de violência sexual sistémica e outras violações dos direitos humanos, além de testemunharem massacres. O Sudão é agora o país com o maior número de deslocados como refugiados na África. O impacto é avassalador: além dos milhões de deslocados internos e refugiados nos países vizinhos, 25 a 30 milhões vivem sob ameaça imediata de fome e obstrução intencional da ajuda humanitária.
3. Segundo a análise de Marc Lavergne, recentemente resumida em Le Figaro, "o Sudão é um país “inclassificável”; situado entre a África subsariana e o mundo árabe, multiétnico e multirreligioso, ligado ao Mediterrâneo, mas também à África Central e ao Sahel, desafia tanto a categorização geográfica como a histórica; conquistado pelos britânicos e pelos egípcios no final do século XIX, que estabeleceram um condomínio no país, antes da independência em 1956, mas, na realidade, "os britânicos não colonizaram verdadeiramente o país (nada foi muito além de um controlo formal)". Assim, pela sua história, o Sudão escapa aos padrões clássicos de “imperialismo” ou de “colonialismo”, ao invés da maioria dos conflitos actuais.
4. Ora, para o politólogo, está aí a questão: o Sudão não é considerado um país onde se deva travar uma luta anti-imperialista, ou anticolonialista. "O conflito que dilacera o Sudão não é uma guerra ideológica, mas um conflito por dinheiro", defende Lavergne; as facções em guerra procuram controlar o país por razões económicas, disputando, nomeadamente, o controlo dos recursos agrícolas e minerais (como o ouro e o petróleo); e, nos últimos dois anos, o conflito sudanês colocou dois generais beligerantes um contra o outro, ambos com as mãos sujas: embora as FAR’s tenham sido certamente cúmplices nos inúmeros massacres de civis, amplamente documentados, os abusos aos direitos humanos do chamado governo "legítimo" do general Al-Burhan não ficam atrás em crueldade e violência. Se, porventura, Israel, ou os Estados Unidos, ou países europeus, estivessem envolvidos nos massacres civis no Darfur, esse seria o principal assunto do momento. É evidente, pois, que esta guerra, embora infinitamente mais mortífera do que os conflitos em Gaza e no Líbano, foi quase mantida na sombra durante dois anos. Lamentavelmente, as vidas negras não valem nada se os assassinos não forem brancos; e, muito menos, se os mortos forem cristãos.
5. Também a Nigéria enfrenta uma escalada de violência que fugazmente concita a atenção dos ‘media’. No Norte, ataques de grupos islâmicos, como o ‘Boko Haram’, e outros, continuam a dizimar comunidades, matando civis e destruindo aldeias inteiras; são milhões as pessoas deslocadas, sujeitas a doenças e à fome. Da parte do governo, apenas a inacção perante a violência sobretudo sobre populações cristãs e minorias étnicas. A fragilidade do Estado perante a insegurança provocada por grupos extremistas mostra que também a Nigéria é um Estado falhado; então, proliferam os conflitos interétnicos, ameaçando a própria unidade nacional. Tal como no Sudão, outro caso flagrante de selecção moral da indignação internacional.
O autor não segue o denominado “acordo ortográfico”