Talvez muitos não saibam, mas o incumprimento da obrigação de pensão de alimentos pode ser crime. Por isso o meu espanto quando sou confrontado com uma decisão do Ministério Público, defendendo que não, caso aquela não surja – e cito – de “responsabilidades parentais, achando-se assim excluída, a violação da obrigação de alimentos devida a ex-cônjuges.” Esta interpretação que temos sem qualquer apoio na letra da lei ou na vontade do legislador, pesa mais do que parece. A defesa da amplitude mínima da norma incriminadora não tem qualquer assento no que se lê na lei, para mais quando o legislador penal conhece o conceito civil de alimentos, a sua latitude, os obrigados, remetendo para aquele. As boas regras de interpretação impõem que o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, mas também que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. No direito, “alimentos” são um daqueles termos que carregam uma família inteira às costas, sobretudo quando a família já não existe, ou existe apenas com a carga duma sentença. Pode ter direito a alimentos filhos, uns pais, ou até um ex-cônjuge. O crime fala em “quem estiver legalmente obrigado a prestar alimentos”. Não diz “pais”, nem “filhos”, ou “menores”. Diz “quem”. Um pronome democrático, inclusivo, ecuménico, que nos remete para a ideia que a obrigação nasce do vínculo e da necessidade, não da idade ou da árvore genealógica. Todavia, lá veio um despacho que encolhe o pronome, como se a gramática fora uma forma de absolvição! Mas a vida real (fora dos gabinetes da “Casa da Justiça” – assim se vai um pouco penosamente ditando, pois para “Palácios” os Tribunais há muito perderam o direito ao título) é bem mais teimosa do que interpretações redutoras. Uma coisa é poder-se não concordar, outra é desvirtuar a história da lei e os valores que esta busca proteger. Que o digam ex-cônjuges – maioritariamente mulheres – que passaram décadas a trocar progressões na carreira por idas à escola, oportunidades por centros de saúde, salários por lides domésticas que ninguém mais recorda. Quando chega o divórcio, chega a fatura, quantas vezes a sobrevivência mínima e uma dificuldade de retomar aquilo que não se perseguiu em prol do que julgavam um bem maior. E há os idosos, aqueles de quem muitos enchem a boca por conveniência, ou sempre chamados em campanhas eleitorais, mas quantas vezes em constrangimento social. Perante isto, o que faz o defensor público da legalidade? Finge que não vê. Porque o bem jurídico aqui protegido não é o estatuto familiar do alimentado, é a necessidade e vulnerabilidade. Aquele momento em que a dignidade deixa de ser palavra constitucional e passa a ser jantar na mesa, renda paga, remédios comprados. O que abisma é que comecemos a discutir se a obrigação de alimentos deve ser penalmente protegida apenas para os filhos que, ao invés de outros, ainda podem ter algum conforto de um outro pai ou até de avós, ou aceder, em última instância, a fundo social próprio, o que é desconhecido para os demais. Mais ensurdecedor, foi ser uma decisão de quem só veio à ribalta do processo para decidir, ignorando e tornando paradoxal a prática de múltiplos atos de inquérito até aí e que, cremos, fosse este o entendimento inicial, seriam desde logo dispensados por inúteis. A definição final de levar, ou não, a julgamento uma pessoa, não pode ficar ao sabor da sorte ou do azar de ter mudado na mesma fase do processo o intérprete inicial. Este crime é, a mais das vezes, ainda o único meio para obrigar devedores a cumprir e proteger os credores de alimentos face a situações de necessidade reconhecida. Talvez fosse bom que o direito, em vez de aguçar pronúncias jurídicas, aguçasse uma maior acutilância da dignidade humana. Porque o “quem” da lei é, afinal, cada um de nós no dia em que precisarmos. Cremos ainda que este entendimento – assim o esperemos – seja isolado, e que se mantenha como peça rara num qualquer museu perdido do direito.
O dia em que o “quem” passou fome
António Lima Martins
10 dezembro 2025